«Minha alma perdida,
Os meus dias têm sido negros e apenas a ideia de regressar me traz algum alento. A rendição das tropas é uma miragem e os homens estão desesperados. Ainda assim, a coragem destes militares é impagável. Já perdi metade dos meus homens. Mas não receies; nem o ferro me verga. Não sei se tenho mais raiva aos alemães ou ao tenente Figueiredo, que anda sempre a meter os pés pelas mãos. Já não o suporto. Comparada com isto, África era um doce nas mãos de uma criança.
Tenho muitas saudades vossas. Como vai o nosso filho? Aposto que já está um homem feito. Não calculas a pena que tenho de não o ver crescer.
Desde a última palavra que escrevi, passou-se quase um dia. Os alemães atacaram de surpresa e estive meio enterrado na lama, sem dormir nem comer. Isto é um inferno e quando sair daqui não tenciono voltar. Não sou cobarde, mas apenas quero lutar pela pátria em Portugal. Um dia esta guerra terminará. Voltarei, nem que seja a pé!
Beijos de quem te ama.
Sempre teu.
Carlos Fernandes.»
Joana ficou em absoluto estado de desassossego com a missiva do marido. A guerra ceifara-lhe o ânimo e ameaçava reter-lhe a vida. Não foi somente a mãe que pressentiu o pior, já que António delongava a leitura em expetativas martirizantes, procurando saber de antemão o que ele escreveria mais à frente para decidir se o deveria ler. Joana pegou depois na carta e começou a contornar as formas das letras, ansiando reconhecer alguma mentira no que escutara. Regressaram depois a casa numa marcha lúgubre, amparando as tristezas. Passaram o dia entre as sombras e o pó. Miguel foi alternando o jogo do pião com o uso da enxada, ajudando a mãe nas sementeiras. Depois do jantar, ajoelharam-se defronte da lareira e rezaram com grande devoção pela proteção de Nossa Senhora de Fátima ao soldado amado e pelo fim da guerra. O fogo crepitava esperanças sibilantes entre as sombras. Trocaram depois um beijo piedoso e foram para os quartos, mantendo as preces e adormecendo num sonho distante.