Sombras de Silêncio #295

O luar fulgia entre as nuvens desistentes e a primavera parecia adormecida pelos brandos costumes. Ao longe, algumas incursões suspeitas furavam pelas sombras da noite e o conforto da letargia. Na sua sala, Girolme dividia a atenção entre a telefonia e um pífaro que comprara alguns dias antes numa mercearia. Quando o viu pela primeira vez ficou absorto num passado longínquo a montante do rio Tejo e quis reavivar a memória. O pífaro era claro como o amanhecer e muito propenso a melodias enfeitadas. Ainda que os sons não fossem propriamente harmoniosos, tal não era o mais importante e ele divertia-se com o que ia produzindo, tentando imitar o som que emergia da telefonia.

Um pouco antes de o ponteiro do relógio de bolso, posto sobre a mesa da sala, passar pela penúltima hora do dia, Girolme largou o pífaro e escutou a música da telefonia. Era uma história sobre o que acontecia depois do amor e do adeus, numa solidão de lugares vazios. Girolme gostava particularmente daquela música. Também ele ficara sozinho, ainda que rodeado por uma multidão silenciosa. Desde o início do ano que o seu amigo Bernardo não aparecia no parque. O trabalho no apartamento transformara-se, há muito tempo, num quotidiano invariável: no domingo, Girolme já sabia tudo o que ia fazer e dizer ao longo da semana. Ainda que a sua estadia no apartamento não fosse forçada, a verdade é que as rotinas diárias lhe dispuseram a vida numa monotonia silente; começou mesmo a encontrar parecenças com período em que esteve preso em Peniche. Parecia até que a sociedade tinha formas próprias, e muitas das vezes insuspeitas, de condenar as pessoas a estados de liberdade deficientes, como se criasse grades invisíveis.

Apesar de no início aquela vida confortável lhe ter parecido tentadora, com o passar do tempo, Girolme começou a considerá-la insípida. As pessoas encafuavam-se nos seus apartamentos e apenas saíam para alguma obrigação, deixando cumprimentos evasivos pelo caminho. Lembrou-se depois do amigo Bilinho e das muitas vivências partilhadas, num tempo em que todos os dias encerravam uma surpresa. Saudosista, concluiu que o coração e a vida não se enchem apenas com aquilo que se possui. A infelicidade residia no facto de tal evidência apenas ser apurada pelo tempo ou pela ausência.

Sombras de Silêncio #295

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