“Depois de vaguear por algumas dúvidas, acocorei-me e fui descendo por onde me pareceu mais fácil. Algum nervosismo começou então a confundir-me a vontade. À minha frente levantava-se uma parede inexpugnável com mais de trinta metros de altura. Acho que desmultipliquei então os sentidos e tentei, através deles, sentir o pulsar do Cântaro. Levantei-me então contra a inércia. Pela frente estava uma pequena descida e, mais à frente, um trilho que jazia ao longo da escarpa. Encostei-me o mais que pude à parede e, num passo medroso, fui caminhando com o olhar inquieto. À minha altura, numa visão sibilante de receios, erguiam-se dois blocos rochosos ladeados pelo abismo. O Cântaro, a ideia, o sonho, o desafio e a própria vida pareceram-me então demasiado grandiosos para que eu, na minha solitude, os pudesse suportar. Suspeitei então que jamais conseguiria chegar ao topo e arrependi-me de ter chegado até ali.
À medida que outros receios me confundiam os sentidos, notei então que não estava preso apenas a um espaço, mas sobretudo a um tempo; a era do comodismo, agrilhoado pelas rotinas, em que a pessoa é mais importante do que o montante de todas as suas ações. Desejei que algum hiato do destino rompesse o sossego do tempo; que o tornasse inquieto e trouxesse valores de outras eras, misturando-os pelas vidas do mundo em mim. Desejei viver numa outra era, enamorado pela ideia de que aquilo que se faz é mais importante do que o nome com o qual se passa pela vida. Resoluto, ergui a vontade e fiz implodir todo o arrependimento por tudo o que não era. Atirei a comiseração ao abismo do esquecimento e encarei na continuação do trilho até ao topo. Embevecido pela aventura, naquele ponto da subida não cheguei a sentir medo, talvez porque não tivesse espaço para mais sentimentos. Conquistei então um local menos íngreme e mais afastado do desfiladeiro. O Cântaro Magro, altivo e perene, ia acompanhando a minha odisseia, guiando-me pelo trilho, torcendo o tempo e o espaço, fazendo com que cada passada não fosse apenas um metro ou um segundo, mas uma entidade própria de êxtase contemplativo e arrebatador.
Retomei a subida e, um pouco mais acima, reconheci que chegara ao ponto referenciado como o mais difícil. Era uma passagem bastante inclinada com cerca de dez metros de altura, dividida em pequenos patamares. Fiquei, por largos instantes, a contemplar o desafio. A esperança parecia minguar, ao arrepio das movimentações tectónicas que foram levantando a Serra da Estrela. Entre aquilo por que já tinha passado e a consolação da existência de uma beira de segurança, resolvi, mais uma vez, lançar-me ao cabo dos meus medos e expetativas. Após um pequeno vislumbre do que tinha acabado de transpor, desviei o olhar para o que faltava e enfrentei-o como se tivesse apenas uma réstia de vida, quase a esgotar-se na clepsidra do meu tempo. Audacioso, quase a tocar o azul do céu, continuei, apressado, chegando por fim à certeza de que já nada me poderia impossibilitar de atingir o topo.
…
Envolvi-me no manto e prostrei-me no amontoado mais alto, virado para a grande depressão, com as primeiras sombras a imiscuírem-se entre os meus sonhos. Fechei os olhos e fui calcorreando as veredas dos pastores, numa viagem pela memória, procurando os aromas do arvoredo. Revivi o tempo das urzes, fragmentos de uma lembrança que se multiplicou pelas estepes. Juntei as palmas das mãos como se unisse em mim o passado e o futuro. Vislumbrei então, na penumbra, o frio do presente. À medida que os sons do mundo se foram abafando na minha consciência, enrolei-me mais profundamente no manto, deixando apenas um olhar curioso para o céu estrelado, longe de todas as certezas.
Juntei as palavras e pesei-as com uma ordem imposta, avultada por vidas criadas a esquadro. Descortinei roupas iguais em vidas diferentes. Esquivei-me a todas as certezas e tentei racionalizar o futuro, criando tantas suposições quantas dúvidas. À medida que fui erguendo comparações levantou-se uma brisa que assobiava por entre os rochedos. Não sabia se estaria preparado para tudo o que o mundo poderia precipitar sobre mim, mas senti-me tão impaciente como se um borboto à espera da primavera, depois de ter passado por um inverno rigoroso. Entre a neblina que se começou a juntar à minha volta fui agasalhando o corpo às dúvidas da alma. Sosseguei os sentidos e afaguei as expetativas. Os barulhos da noite saíram então para fazer companhia à lua e foram espalhando os seus murmúrios pelas escarpas.”