Sombras

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“A lua pendia, redonda e brilhante, sobre o horizonte. A noite tinha assentado uma calmaria aparente nas montanhas e deslizava uma brisa suave pelas suas encostas selvagens. Os olhos estavam já habituados à penumbra cintilante e moviam os corpos pelos trilhos dos pastores. Os rapazes seguiam lestos e em silêncio, como lobos esfaimados à espera de consumir o tempo, ou pelo menos acelerar a sua cadência. Aquela floresta era o centro do nosso mundo, com a fogueira a puxar toda a vida circundante, entre as criaturas da serra. Eu seguia atrás deles, juntamente com Tautalo, incógnito por debaixo de um capuz. Deixei por alguns dias o exército entregue a Ditalco e retornei aos Montes Hermínios.

Olho de Raposa esperava-nos à entrada da Floresta dos Deuses, empunhando um cajado, mesmo ao lado da fogueira. Trajava uma capa de pelo e à medida que os jovens chegavam, sentavam-se à sua volta. As águas do ribeiro seguiam lentamente o seu curso, criando uma ténue melodia de passagem. Os ramos das árvores, acossados por uma brisa gélida, roçavam entre si em gemidos de dor. Quando todos se sentaram deveriam ser mais vinte e eu deixei-me ficar atrás das sombras. Antes da guerra, as iniciações eram vividas entre pai, filho e a montanha, sendo que Olho de Raposa muito raramente assistia.

O silêncio seguinte espelhou uma miríade de desejos e anseios. Os olhares, curiosos e expectantes, cruzaram o ar. Olho de Raposa deu uma volta premonitória pelos seus ouvintes e continuou depois: «A notícia da nossa vitória espalhou-se pelos povos como se fosse a neblina serrana num dia de primavera. Os clãs deixaram de estar tão isolados e passaram a fazer parte efetiva da Lusitânia. E vós, sabeis o que é a Lusitânia? É um sonho; um sonho tangível de Viriato.»

Todos ouviam fascinados. Os seus olhos, brancos como a neve, exibiam um desejo comum para lá da vida que possuíam e sobretudo pelo que desconheciam do mundo. Um medo silencioso observava-os numa inquietude soturna; eram homens a haver num mundo de deuses sedentos. Por vezes, entre os intervalos das palavras, escutava-se um gemido impronunciável de dor ali perto. Talvez fosse de algum animal perdido ou amaldiçoado, mas na mente dos jovens deveria ser o senhor das trevas, vagueando faminto à espera deles. Olho de Raposa cirandou entre eles num silêncio expectante, empunhando o cajado. Aproximou-o depois da fogueira por alguns instantes e fê-lo girar num mistério latente.”

in O tempo inquieto.

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