Dez anos pelo lado selvagem da Estrela

Passaram dez anos desde a criação da iNtO tHe WiLd (GC3ER8Y) e da minha primeira subida da Serra da Estrela. Idealizada em conjunto com o “sherpa” Sérgio Reis, pretendia oferecer uma visão de contextos diferentes da serra por trilhos de montanha, numa subida desde Seia até à Torre. Da sua concretização, para além da beleza serrana, recordo as dificuldades da quase hipotermia e a fantástica descoberta de, partindo de pouco mais do que um mito, termos encontrado o acesso à galeria de túneis da Torre, o que nos permitiu uma espécie de viagem insuspeita a uma realidade distópica.

Desde então, já fiz a subida várias vezes e com muitos amigos, mas relembro em particular a experiência no contexto do Ultra Trail Serra da Estrela, com uma ascenção durante a solidão da noite e a chegada à Torre aquando do nascer do sol.

Até ao momento, a cache/experiência teve cerca de cem visitas e sempre foi um prazer ler a descrição das descobertas. Em jeito comemoração e memória, fica o relato da primeira após a criação, em condições difíceis, pelo CMatos:

 

Está alcançada uma marca histórica na minha vida de geocacher! O FTF numa cache de dificuldade 5/5 (dadas as condições atmosféricas em que o fiz).

Vamos à história:

Dia 1 de Maio de 2012 (Parte 1)

Hoje foi o dia tantas vezes adiado.

O dia “InToTheWild”…

Manhã cedo, juntar o equipamento necessário na mochila e zarpar para Seia. Tinha decidido fazer esta cache a solo para cumprir à risca o espírito desta cache, testando as minhas capacidades e assim foi. A meteorologia não era favorável, mas no terreno, estava-se a aguentar. Assim cachemobil arrumado, mochila às costas e serra acima. Até à Senhora do Desterro é sem espinhas, depois segue-se a parte mais agradável e fácil do percurso, sempre juntinho às levadas, 1º do Desterro e depois dos Cornos do Diabo. Parece mesmo que estamos na Madeira. As pontes de pedra sucedem-se, dois ou três túneis, ribeiras que passam por cima da levada, e uma outra que passa por baixo de uma bela ponte por onde corre a levada, nesta época com um caudal considerável. Rapidamente e sem se dar por ela (com umas caches pelo meio), chega-se à pequena represa dos Cornos do Diabo, depois segue-se um estradão até ao Porto de Bois, em mais um troço para desfrutar.

A partir daí começa a verdadeira aventura e tudo se complica. Primeiro por um trilho bem marcado pela passagem dos rebanhos e aqui e acolá com duas pintas vermelhas (que identificam o T13) até que se chega à Nave Travessa, local de pastoreio com a Barragem do Covão do Curral a espreitar lá em cima. Aqui encontrei dois pastores (um da Lapa outro do Sabugueiro, com quem estive um pouco à conversa (pensavam que andava perdido, ou que andaria a filmar…). Quando lhes disse que ia para a Lagoa Comprida, um deles disse-me que o trilho seguia para Sudoeste contornando o Cerro do Carvalhalzinho pela direita e que o trilho estava marcado com montes de pedras, tendo o outro acrescentado que os “caramoiços” eram bem visíveis. Portanto o que para nós são Mariolas, para ele são “caramoiços”.

Como o track que eu ia a seguir no GPS indicava a outra vertente (Sudeste), fiquei apreensivo, mas segui-o, não sem antes os pastores me terem assobiado, vendo que eu não seguia na direção certa, mas eu continuei… a corta mato. Pouco depois a chuva, que até aí não terá sido mais que duas pingas, tornou-se mais forte e persistente não mais me deixando. Com tanta giesta queimada que por ali existe, foi o bom e o bonito para passar embrulhado no meu poncho. Esta subida é de facto muito, muito penosa. Escusado será dizer que ao chegar ao topo o poncho já se apresentava redecorado, com vários rasgões, buracos e todas as “molas” inutilizáveis, mas estava no topo onde se volta a encontrar o trilho T13 marcado com as pintas vermelhas. A Lagoa comprida estava à vista e isso anima o espírito.

A partir da Lagoa as coisas complicaram-se ainda mais. A chuva deu lugar a um granizo fininho que puxado a vento dói para catano. Calçadas as luvas de montanha, protegida a cara continuei por caminhos e trilhos transformados em cursos de água. Quando virei à direita para o trilho T1 a neve no chão começou a aparecer mais e mais. O granizo deu lugar à neve que nos lugares abrigados era mansinha, mas à medida que ia subindo em direção ao “Cume” fustigava-me puxada pelo vento que se fazia sentir com mais intensidade. Quando vislumbrei o marco geodésico a Serra abateu-se sobre mim e o poder da natureza revelou-se. Um fortíssimo vento de Sudoeste transformava a neve em facas e tornava muito difícil a progressão, isto aliado ao intenso nevoeiro que reduziu a visibilidade para uns 20m e um manto branco no qual com frequência me enterrava até aos joelhos e que tornava o horizonte todo igual, obrigaram-me a tomar uma decisão: Abortar e dirigir-me para um local seguro. A estrada.

Por experiência sabia que esta distava cerca de 700/800m deste marco geodésico, e que estava na direção contrária ao vento, pelo que, olhando praticamente só para o chão e para o GPS (pois era quase impossível virar a cara contra o vento) mantive o vento contra mim tendo o cuidado de que a linha traçada pelo GPS era o mais retilínea possível (para não andar ás voltas). Agora o meu medo era que a estrada estivesse fechada e o meu transporte não me pudesse resgatar, mas de repente, do nada, vejo passar um carro mesmo à minha frente e logo depois os familiares postes preto e amarelos. Estava na estrada. Um telefonema, 3 passagens de limpa neves e uns minutos depois estava na segurança e conforto do meu cachemobil graças à minha esposa. A Estrela não me deixou concluir esta epopeia, e como com ela não se brinca (e eu já tinha abusado um pouco) … a conclusão fica para breve. Estão percorridos cerca de 23km em 6h16m a uma média de 3,8Kh.

Dia 5 de Maio de 2012 (Parte 2)

Hoje a Serra não me iria derrotar, estava determinado. Tendo partido do sítio onde ficara, fui conquistar uma outra cache “Fragão do Poio dos Cães”. Contra vento, neve e nevoeiro, fui seguindo com todos os cuidados até esta maravilhosa cache, daquelas que só a Estrela proporciona. Convém referir que nesta última parte da “InToTheWild” não segui rigorosamente o track disponibilizado, pois com neve em todos os vales correm pequenas ribeiras e a altura da neve é maior, pelo que se torna mais perigoso caminhar, assim optei por trilhar o caminho que me pareceu mais apropriado de acordo com as necessidades. E foi assim que cheguei ao fragão. Nesta altura S. Pedro brindou-me com uma aberta na neve/chuva, levantou um pouco o véu de nuvens e até uma pitadinha de sol brilhou. Pude então apreciar toda a imensidão da paisagem, e fazer com calma esta cache. Com céu limpo é bonito, mas com estas condições a paisagem torna-se ainda mais bonita, quase mágica. E eu ali, na mais absoluta solidão, um ponto pequenino na imensidão do universo…

Só quando voltou a pingar e o nevoeiro se fechou novamente, é que me lembrei de que era preciso continuar rumo ao topo. Mais neve, vento, enterra aqui, escorrega ali, e atravesso a estrada em direção ao Covão do Meio, mas resolvi não descer até à sua cache e seguir para a lagoa do Covão das Quilhas e daí alcançar a Torre, o meu destino final. Chegado ao ponto indicado pelo amarelinho, como ponto X, fiquei apreensivo tal a altura da neve. Comecei a escavar, aqui e ali e mais além… o problema é que um palmo abaixo a neve transforma-se em gelo e fica muito mais difícil. Com as luvas completamente encharcadas, as pontas dos dedos dormentes, decidi, contra os meus princípios (já que a situação o justificava) pedir uma dica ao Owner. Depois dela (obrigado Cruz) ainda demorei uns bons 5 minutos a escavar com a ajuda do bastão de caminhada, mas agora sabia que estava no sítio certo. Entretanto a neve parou mas o nevoeiro adensou-se. Com o tesouro finalmente nas mãos, abro-o e…

Querem saber o final da história? Então preparem-se muito bem, física e psicologicamente, e partam à descoberta da Serra da Estrela, partindo de Seia e fazendo esta cache que não tenho dúvida, dará muito que falar no geocaching Português, sendo para mim, a cache das caches em Portugal. Não há favorito que chegue para classificar esta cache. Parabéns aos Valente Cruz e Sphinx n Sophie pela cache e um obrigado por tudo o que ela me proporcionou. Os cerca de 6Km de hoje demoraram mais ou menos 4h.

Com tudo isto até me esquecia:

In: TB

Out: O Santo Graal da Estrela.

Very T.F.T.C.

Dez anos pelo lado selvagem da Estrela

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