Sonhos, caixas e cascatas

Pena Amarela

A queda de Sonho

No início das eras, num tempo sem tempo, a Terra era governada por gigantes e os homens eram seus escravos. Os gigantes viviam em palácios de pedra no cimo das montanhas e eram caçadores exímios. Tinham uma feição macilenta e horrenda, com um único olho de íris negra como a noite e os dentes afiados como as garras do diabo. A sua respiração era pesada e o seu grito ouvia-se para lá das brumas do mundo. Por cada lua cheia, organizavam jogos bélicos em que os homens digladiavam-se pela vida e quem perdesse servia de alimento para os gigantes inexoráveis.

Serra da EstrelaNesse tempo, os homens comunicavam por murmúrios tristes e incompreensíveis, pois ainda não tinham inventado a palavra escrita ou falada. Certo dia chegou a um palácio uma escrava vinda do norte. Tinha os olhos azuis e os cabelos loiros como sol. Chamaram-lhe Gaia. Frágil e inefável, o destino subjugou-a à derrota numa luta e o lume foi aceso debaixo dos funestos caldeirões. Houve porém um gigante, de seu nome Sonho, que se apiedou dela e levou-a às escondidas dos outros, embrulhada no coldre onde habitualmente carregava a sua espada.

Quando os outros gigantes descobriram a traição, procuraram-nos por todas as montanhas e vales, até que os encontraram, já depois de muitas luas. Sonho agarrou na sua amada e precipitou-se numa fuga por entre as armadilhas montadas pelos seus inimigos, até que o senhor dos gigantes o fez cair. Encurralado e ferido, diminuído de qualquer vã esperança, num instante longe das vistas dos seus irmãos, escondeu-a num recanto da pedra e com um dedo abriu o seu próprio peito e tocou no coração, enquanto com outro dedo tocou na testa de Gaia, dizendo-lhe que ela iria encontrá-lo quando encontrasse o sono, desfazendo-se depois numa miríade infinita de gotas de água.

Os gigantes procuraram-no até perderem a paciência e desistirem. Gaia manteve-se escondida e quando o cansaço sobreveio ao medo, adormeceu e encontrou Sonho na sua consciência. Maravilhada, passou a adormecer cada vez mais cedo e vivia entre o Sonho. Ele, com o tempo, ensinou-lhe o dom da palavra falada e escrita.

À medida que as diferenças se iam esbatendo por força do seu amor perene, a vida cresceu no ventre de Gaia. Nasceu uma menina e decidiram chama-la Água. Outros filhos se sucederam e Gaia ensinou a todos como encontrar o seu pai Sonho, continuando a viver escondidos dos terríveis gigantes.

Perto da sua morte, Gaia retornou ao local onde Sonho tinha caído e escondeu uma caixa de vontades, para que todos os seus descendentes nunca se esquecessem das palavras reveladas assim como de visitarem o Sonho tão antigo como o tempo.

Já depois de a lua ter desistido de contar voltas, pela palavra e por todas as vontades que se foram juntando, Sonho instou os homens a derrotarem os gigantes e finalmente conseguiram conquistar a liberdade que souberam merecer. A caixa de vontades ainda pode ser visitada junto à queda de Sonho, mas como lá foi colocada em tempos imemoriais, numa altura em que ainda não havia satélites em órbita, as coordenadas podem divergir um pouco.

Frecha da Mizarela


Indiana Taparué e o legado de Sonho

Após a grande batalha que pôs fim ao domínio dos gigantes sobre a Terra, pelos acontecimentos que se seguiram à queda de Sonho, os homens viveram em paz e harmonia durante largos anos. Os seus reis governavam de uma forma justa e benevolente e as recordações horripilantes de tempos antigos sucumbiram ao raiar da esperança de uma nova era.

Mas, entre as trevas do mundo, uma sombra alastrava-se como um sussurro do medo numa noite invernosa. Durante a batalha derradeira, o último senhor dos gigantes, encurralado no seu palácio no pico da mais alta montanha, ao aperceber-se da derrota eminente, abriu o seu peito e transferiu a sua essência para um homem que permanecia seu escravo. Durante a noite, longe dos sonhos de outros, o gigante vinha visitar o homem que, ao fim de alguns anos, levou a família para o topo de uma montanha e passaram a viver como eremitas.

Vila de ReiVárias gerações se sucederam, partilhando todos os mesmos sonhos tenebrosos, e quando os eremitas já eram mais do que mil, começaram a urdir planos contra os outros homens. Surgiram então vários conflitos que culminaram com a Guerra das 1000 luas, cujo desenlace foi a criação de dois reinos distintos com as fronteiras bem delimitadas.

O tempo atropelou-se numa vontade fugidia e as eras sucederam-se, sendo que as fronteiras dos dois reinos foram-se esbatendo à medida que a ambição e o desejo de poder dos homens iam crescendo. Chegou uma altura em que os homens já não identificavam de que lado tinham estado os seus antepassados na Guerra das 1000 luas ou tão pouco sabiam quem tinha sido Gaia, sendo que os seus sonhos misturavam-se com os pesadelos como uma dança universal entre o sol e a lua.

Num dia de que não há registo a sua exatidão, quando os homens viviam em querelas constantes, houve um jovem aventureiro e arqueólogo, de seu nome Indiana Taparué, que encontrou um pergaminho na Biblioteca Perdida, onde estava contada toda a história da primeira era. Seguindo as suas indicações, Indiana Taparué foi até ao local onde Gaia residiu quando vivia escondida dos gigantes, numa passagem secreta por detrás de uma queda de água.

No esconderijo de Gaia, Indiana Taparué encontrou uma velha caixa com uma mensagem quase esbatida pelo tempo e lá dentro achou um ser tão pequeno que a sua presença apenas pode ser sentida quando todos os sentidos se apagam e a consciência atinge um equilíbrio com a natureza.

Suspeitando que o tempo poderia deturpar a alma humana, aproximando-a aos gigantes, Sonho revelou a Gaia a existência de tais criaturas, tão antigas como o tempo e que viviam escondidas nos cumes cobertos de neve. Ela, ao fim de algumas tentativas, conseguiu encontrar um e trouxe-o para o seu esconderijo.

Indiana Taparué desdobrou o pergaminho, que estava amarelado pelo tempo mas nada lá estava escrito. Sabendo de antemão o que tinha de fazer, colocou o pergaminho na água e as letras surgiram:

 “Nesta caixa vive um bagbi.

Sussurra-lhe uma vontade ou um sonho e leva-o, de forma furtiva, a quem a queres inculcar enquanto ele dorme.

Ao acordar, o homem não descansará enquanto não cumprir essa vontade.”

Cascata da CabreiaDe tão entusiasmado que estava, Indiana Taparué agarrou na caixa e preparava-se para sair quando ouviu um estrondo profundo. As rochas que sustinham o leito do rio começaram a ceder e ele, num fôlego, conseguiu escapar por pouco, submergindo entre as águas cristalinas.

Mal abriu os olhos, deparou-se com homens que o acometiam com espadas em riste. Ele, num ápice, atravessou para a outra margem cima do tronco e, seguindo pela margem, chegou a uma levada/vereda. Seguiu-a, mas os homens foram no seu encalço, gritando promessas de uma morte dolorosa.

Passou então por um carvalho secular que pende sobre o rio e meia dúzia de metros depois desceu por um velho trilho que seguia em direção ao rio.

Contudo, antes de chegar à água, escutando os passos dos homens que o perseguiam subiu a um penhasco que ficava sobranceiro sobre a lagoa que o gigante Sonho tinha criado e onde ele escondia o seu corpo enorme.

Num relance, Indiana Taparué escondeu a caixa debaixo de um penedo e atirou-se para a lagoa. Os homens que o perseguiam dragaram a água durante dois dias e duas noites mas não o conseguiram encontrar.

A história soçobrou para a lenda e o mito adormeceu-a pelas eras da Terra, mas a brisa vai murmurando esta história através dos tempos e há quem diga que a caixa ainda pode ser encontrada onde Indiana Taparué a escondeu, apesar de não existirem certezas se o bagbi ainda lá está. Outros dizem que, algum tempo depois, Indiana Taparué voltou ao penhasco e levou o bagbi, deixando contudo lá a caixa e desde então o pequeno ser, aedo de Sonho, tem passado de guardião para guardião, procurando mudar vontades ao sonho dos homens.

 

Portal do Inferno


Indiana Taparué e o Sonho no Portal do Inferno

O mundo está mudado. Cinzas e sombras vagueiam como espectros, sussurrados pela brisa abafada, escondendo a realidade em sonhos imateriais que adormecem a mente numa felicidade aparente. A queda de Sonho é um mito esbatido pelas eras. A ténue linha da percepção há muito que foi rompida pelo desejo de eternidade. Logo após a descoberta do bagbi, segundo os relatos de Indiana Taparué e o legado de Sonho, o pequeno ser foi levado e escondido do mundo. Com uma vontade inexpugnável de toldar as mentes para o bem, Indiana Taparué tornou-se um eremita nas encostas da serra da Arada, enquanto tentava dominar os pensamentos e encontrar uma sintonia harmoniosa com o bagbi, moldador de sonhos.

Serra da LousãQuando enfim achou que estava preparado, Indiana Taparué, vagueou pelas montanhas até encontrar um outro eremita que vivia no monte de S. Macário, que o convidou para passar algum tempo consigo. Logo na primeira noite, Indiana Taparué segredou ao bagbi um desejo e, durante o sono, deixou-o com o eremita, sussurrando-lhe a vontade para que voltasse para a sua aldeia. Logo na manhã seguinte, os dois desceram a encosta e o eremita levou-o a conhecer a sua família, com a promessa de nunca mais a abandonar. Como forma de agradecer a sua aparição, o antigo eremita fez um pedido ao fazendeiro abastado, para quem ele tinha trabalhado, para que aceitasse dar trabalho de jorna a Indiana Taparué que, contudo, pouco aquiescido, disse que não poderia aceitar pois tinha uma missão muito importante para fazer cumprir.

Ao último cumprimento, enquanto se despedia do antigo eremita, Indiana Taparué encarou com uma doce donzela de cabelos alourados e de cara suave e os dois ficaram com o destino preso no olhar. O seu nome era Sibela e era a única filha do fazendeiro. Tampouco o pai dela aceitou Indiana Taparué como genro assim como o próprio admitiu trabalhar para ele, deambulando depois pela terra como saltimbanco, sempre acompanhado pelo bagbi, moldando vontades segundo a sua perspectiva de um equilíbrio harmonioso, tentando esbater a dicotomia entre o bem e o mal.

Porém, todos os anos, no dia 14 de Novembro, Indiana Taparué regressava oculto à aldeia e encontrava-se em segredo com Sibela, que nunca casou o seu amor com outro homem. Muitos anos se passaram até que os pais de Sibela sucumbiram à erosão da idade e ela tomou conta da quinta. No ano seguinte, Indiana Taparué já não partiu e os dois dedicaram-se a recuperar os dias que lhes tinham sido roubados, entrelaçando os momentos entre o efémero aparente e o infinito de como o viviam.

Contudo, poucos meses depois, o tempo precipitou-se numa fugacidade invencível e Sibela adoeceu. Indiana Taparué mostrou-lhe então o bagbi, contando-lhe o segredo da sua vida, revelando ainda que, desde que a tinha visto pela primeira vez, que a encontrava em cada sonho que vivia, sempre quando os seus olhos se cerravam. Uma vida imaterial dentro de uma vida inacabada. Sibela sucumbiu pouco depois, enquanto uma lágrima lhe tombava do rosto enrugado pela tristeza.

Indiana Taparué, soterrado numa melancolia tangível, numa raiva indizível, afastou-se das pessoas e subiu às montanhas, tendo ido viver para o Portal do Inferno, junto às cascatas da Ribeira de Palhais. Aí, passou o resto dos seus dias aprisionado pelas memórias de Sibela, dormindo num amor que a vida lhe roubou, entre um sonho agradável sussurrado pelo bagbi e os resquícios de uma realidade atroz.

Entre o mito e a verdade, há quem assegure que o bagbi ainda lá se encontra à espera do próximo portador que demonstrar ter um coração verdadeiramente puro.

Rio de Frades


 

Sonhos, caixas e cascatas

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