Sombras de Silêncio #364

No verão, durante os primeiros dias de agosto, os donos costumavam revisitar a quinta e o mosteiro. Por esses dias, a vida agigantava-se numa roda-viva de afazeres e limpezas na casa que eles ocupavam. Girolme alegrava-se a cada reencontro, sendo que eles também gostavam muito do seu espírito genuinamente bom.

Os dias, as semanas, os meses e os anos passaram. Revistos pela memória, pareciam uma linha indelével de pequenas felicidades. Girolme tinha finalmente encontrado o seu lugar no mundo. Lamentava apenas que tivesse demorado tanto tempo. Nas noites solitárias, sentava-se junto à lareira, olhava atentamente para o compasso indomável dos ponteiros do seu Cortébert Speciale e tentava engendrar um plano para reverter o seu movimento perpétuo.

Depois de quase uma dúzia de anos na quinta, a vida de Girolme foi revirada pela tristeza. Após um Carnaval engripado, Etelvina não atentou às queixas do corpo e deixou que uma pneumonia a colocasse à beira da morte. Numa manhã de domingo, quando ela já não conseguiu sair da cama, Asdrúbal chamou um carro de praça e os dois seguiram para o hospital de Viseu. Asdrúbal pediu ainda a Manel para que fosse regar uma sementeira de batatas. Porém, à saída dos pais, Manel foi entristecendo de angústia, sentado na estrada. Resoluto, levantou-se depois para vencer a distância que o separava da mãe, numa urgência inaudita. Seguiu o mesmo trajeto que os carros e acabou por entrar no recente IP5, sem ligar aos sinais ou às mensagens. Ao chegar à ponte sobre o rio Dão, cedendo ao apelo de contemplar a paisagem que se estendia pelo vale, cruzou a estrada e foi atropelado. O funeral decorreu no dia seguinte, estando a mãe ainda de cama no hospital e sem saber o que tinha acontecido. Tratou-se de uma cerimónia simples e sem grandes clamores, com poucas lágrimas, mas com muita melancolia. Girolme estava atónito; não conseguia imaginar o resto da sua vida sem o seu melhor amigo. Sentia a morte a rodeá-lo e passou a cerimónia com a mão no bolso a dar corda ao relógio. Etelvina viria a recuperar da maleita, mas Asdrúbal não, vivendo o resto dos seus dias na sombra da memória dos filhos moribundos, entre lamentos distintos.

Pouco depois da tragédia, o dono veio à quinta com o seu carro novo, o último modelo da Mercedes. Pretendia tratar de assuntos recentes, inspirado pela entrada do país na Comunidade Económica Europeia. Luís acompanhou-o durante toda a tarde, escutando atentamente as indicações fornecidas. Na manhã do dia seguinte, Luís tratou de fazer a contagem de todas as espécies, arbóreas e animais, que existiam na quinta. Ao terceiro dia, reuniu todos os papéis, conforme tinha sido instruído e foi chamar Girolme para ir com ele a Mangualde.

Girolme ficou um pouco surpreso com a proposta, pois era a primeira vez que era convidado para andar de carro. Entraram para o Citröen, estacionado por debaixo da parreira de videiras no largo em frente ao mosteiro, e seguiram pela estrada de terra ao longo do ribeiro, enquanto Hugo e Tiago se distraíam com um carrinho de rolamentos. Quando chegaram a Mangualde, seguiram de imediato para o edifício da Junta de Freguesia, onde funcionava também a Casa do Povo.

Sombras de Silêncio #364

Comentários