Sombras de Silêncio #361

Levantou-se depois uma discussão mais acalorada sobre uma jogada. Geadas chateou-se, levantou-se e deixou a taberna a largar impropérios, enquanto os outros se riam e o mandavam para a terra dele. Ao verem-no subir para a mota, e sabendo do seu estado de embriaguez, alguns rapazes correram dele e agarraram-se à mota. Durante a subida, o motor acabou por desligar-se. Cada vez mais furioso, o pastor teve de voltar para trás para ganhar andamento. Após mais uma tentativa infrutífera, em pleno estado de alienação, Geadas largou a mota e correu atrás deles. Acabou por desistir e entrou na taberna para beber mais um copo.

Geadas regressou pouco tempo depois à rua com mais vitupérios e acabou por levar a mota à mão durante a maior parte da subida. Quando notou que as ameaças se tinham esfumado entre as brumas ébrias da consciência, deu ao pedal, montou na mota e prosseguiu pela estrada, ziguezagueando a escuridão. Contudo, e segundo explicaria mais tarde, «um carro que estava mal-estacionado na capela» acabaria por lhe provocar um acidente terrível, ao precipitar-se para o poço do Zerno, que fica a cerca de duzentos metros e duas curvas depois. A mota embateu na vedação e catapultou Geadas para o poço. Em gritos de desespero, conseguiu agarrar-se às silvas e salvou-se. As notas boiavam como se fossem nenúfares. Quando o puxaram para a estrada, numa altura em que a embriaguez já tinha sido afogada pelo susto, Geadas pôs-se de joelhos e chorou a perda do dinheiro. Com a ajuda de alguns e a incredibilidade de outros, o dinheiro foi resgatado e ele seguiu o seu caminho, perdendo-se depois nas memórias do século.

Por altura do acidente, Girolme e Manel já tinham saído da taberna e estavam embrulhados com os rapazes, que insistiam para que Manel fosse jogar futebol com eles. O objetivo passava mais por acertar-lhe do que por marcar golos ou vencer a noite. Depois de mais alguns momentos de entretenimento forçado, os dois prosseguiram pela calçada de sombras solitárias e cada um continuou para a sua casa.

Girolme desceu pela noite fria e escura, contornando as esquinas do medo e refugiando o olhar no chão. Os ruídos do desconhecido assustaram-no bastante e ele prometeu que nunca mais se atreveria a uma viagem tão tardia. Por entre laivos de claridade ofertados pela lua, reconheceu, numa curva do caminho, o monte Castro. A vegetação alta e densa grassava nas suas encostas silentes. Pareceu-lhe que seria um domínio limítrofe à humanidade, onde as feras governavam em rasgos de desconsideração. Girolme imaginou que seria para ali que confluíam as criaturas ruins da região e assustou-se profundamente. Seres terríveis de um espaço inferior que guardavam o tesouro, com dois leões de ouro à porta. Por momentos, sentiu um chamamento, tão inusitado quão terrífico, para embrenhar-se naquele território ignoto. Todavia, o medo sacudiu-lhe os sentidos e prosseguiu pelo caminho. Passou a capela e ao chegar a casa foi provar o pão que Luís lá deixara. Meteu-se depois na cama, já liberto do frenesim de não saber o que se escondia para lá das brumas, e adormeceu em considerações utópicas sobre o tesouro.

Sombras de Silêncio #361

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