– Uma noite… estávamos muito quietinhos no aquartelamento, a jogar às cartas e… ouvimos um grande estoiro ali perto. Pegámos logo nas metralhas e fomos ver o que se passava. Tinham atirado uma granada para a caserna do lado. No meio da confusão, saímos para ver se ainda salvávamos alguém. Foi então que, das copas das árvores, começaram a disparar sobre nós. À pressa, enfiei-me debaixo de um carro e encontrei lá um amigo, com quem passara a tarde a conversar. O pai dele trabalhava num jornal em Santarém. Tínhamos combinado que quando regressássemos ele iria apresentar-me ao pai para saber da possibilidade de eu ir trabalhar para lá. Porém, naquele momento, ele estava ali esticado com as tripas de fora e a implorar-me que o ajudasse. E o cheiro… cheirava a ferro… a humidade… a sangue. Mas o que é que eu podia fazer? Tentei enfiar-lhe as tripas para dentro, mas desarranjaram-se… e ele gritava cada vez mais. O tiroteio continuava… e ele passou a gritar cada vez menos… até que morreu. Os combates duraram toda a noite. Estive sempre com ele. E aquele cheiro… ainda hoje o sinto.
– E como é que acabou? – perguntou Girolme.
– Pela manhã, chegaram os nossos reforços e eles fugiram – disse Alberto, em lágrimas.
– Isso é que era gente reles! – comentou Girolme, incrédulo. – O Alberto desculpe-me, mas é que às vezes nã percebo certas coisas: por que é que havia essa guerra?
– É muito simples: aquilo era deles; depois passou a ser nosso durante muito tempo e depois eles quiseram-no de volta.
A singeleza da explicação apenas confundiu ainda mais Girolme, cuja sentença vacilou consoante ia perspetivando de forma diferente a problemática.
– A guerra estava viciada. Parecia até que a natureza estava contra nós. Naquele rio… o Joca… não eram apenas os guineenses que nos queriam expulsar. A natureza não nos queria lá… Deus não nos queria lá – terminou Alberto, permanecendo encostado à parede.
Girolme, em silêncio, deitou-se e ficou agarrado à memória até adormecer pelo cansaço. Não compreendia como é que podia haver tanta maldade no mundo.