Sombras de Silêncio #327

Na manhã do dia seguinte, os peregrinos foram enganar a fome numa barraca que tinha sido montada nas proximidades do albergue. Conforme tinha sido combinado, já tinham à espera um caldo verde quentinho e pão benzido. Alberto ficou defronte de Girolme que, sabendo do passado bélico do peregrino alentejano, resolveu perguntar-lhe se tinha algumas histórias da guerra.

 – A guerra… foi na Guiné. Eu estive lá durante quinze meses… e catorze dias. Na guerra… a guerra foi na Guiné e já acabou. Eu já cumpri. Não quero falar mais disso.

De forma inadvertida, o pedido de Girolme acabou por deixar Alberto reflexivo e irritadiço. Girolme notou-o e pediu desculpa de imediato pela intromissão desnecessária. Percebeu depois que ele apenas queria ficar em paz, se possível com Deus.

– Deixe lá – continuou Alberto, remexendo o vazio, de olhar perdido na tigela –, você não fez por mal. O melhor é deixar o passado onde ele está; deitá-lo para trás das costas e rezar para que ele não venha atrás de nós.

Girolme não tinha como compreender as referências traumatizantes, mas ficou agarrado à ideia de não remexer o passado, recordando a sua princesa, pela impossibilidade de ele se concretizar em algo mais do que lembranças e angústias.

– É o nosso fado – disse Marco, sentado ao lado de Girolme.

– Que se lixe o fado! Que se lixe isto tudo. Quando eu andava lá… todo lixado, enterrado no capim até às orelhas, ninguém quis saber de nada. Quando voltei deram-me uma palmada nas costas e disseram-me que eu tinha servido o meu país com dignidade. Dignidade? O que me interessa a dignidade se não consigo dormir mais do que duas horas seguidas? O que é que me interessa a dignidade se a minha mulher… – interrompeu bruscamente Alberto, notando que todos o olhavam com estupefação, continuando depois –, desculpem, eu não sei o que estou a dizer.

– Vossemecê não tem de pedir desculpa – confortou-o Pedro, tentando acalmar a volatilidade do temperamento do ex-combatente –, a sua vida não foi fácil e tem toda a razão em sentir-se insatisfeito. Mas há que ter esperança; pode ser que tudo se resolva. Quer dizer, pelos vistos vai mesmo resolver-se porque a guerra vai acabar. Eles que se governem por lá. Vai ver que tudo se há de arranjar; o que é preciso é ter fé!

Sombras de Silêncio #327

Comentários