Sombras de Silêncio #320

Pedro foi desde cedo preparado para abraçar o seminário, tanto por motivos religiosos como por questões eminentemente práticas. Porém, durante a sua adolescência, o pai descobriu que ele namorava com uma rapariga do bairro. Dada a teimosia do rapaz em deixar a rapariga, castigou-o com um mês de isolamento no quarto, tendo como única companhia uma bíblia. Depois de algum tempo de indefinições e escoriações, o pai reconheceu que mais valia fazer dele um bom homem do que um mau padre. Permitiu então que ele namorasse com quem quisesse, mas seria ele a escolher a mulher com a qual o filho haveria de casar.

Havia já alguns anos que eles faziam a peregrinação a Fátima. O caminho começava em Lisboa cinco dias antes do aniversário das aparições. À medida que passavam por outras localidades o grupo ia aumentando; no último ano tinham chegado à Cova da Iria com mais de trinta pessoas. Pela fraternidade de outras peregrinações, deixara de ser um evento estritamente religioso e tornara-se um ritual de amizades. Os quatro levavam uma mochila com cobertores, bebidas, alimentos e algum dinheiro. Nas noites de maior frio ou chuva eles optavam por ficar em albergues ou hotéis. Se estivesse bom tempo gostavam de caminhar de madrugada e descansavam durante o dia. Sempre que passavam pela casa de um amigo caminhante tinham uma mesa de petiscos à espera e seguiam depois a viagem. Como se fosse um custo adicional pela caminhada minguada, aos últimos da romaria cabiam as maiores faturas. Mas ninguém se importava.

Apesar das diferenças, Girolme adaptou-se ao grupo com uma naturalidade quase insuspeita e todos seguiram de encontro ao Tejo, continuando posteriormente ao longo da sua margem em direção a Santarém. Ainda que Pedro insistisse para que o grupo colmatasse os pequenos custos inerentes à peregrinação de Girolme, o próprio persistia em pagá-los. Respondia que eles já tinham feito o suficiente no dia em que o livraram da perdição descrita.

Os metros foram-se transformando em quilómetros e os dias pareciam ganhar mais horas do que realmente tinham. Girolme aproveitava o tempo para se entregar, de forma incondicional, à penitência. Ocupava o tempo em lembranças dos seus pecados, martirizando-se por cada um deles. Pretendia ter o máximo de ofensas devidamente catalogadas para evitar surpresas desagradáveis no momento da avaliação final.

Sombras de Silêncio #320

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