Sombras de Silêncio #317

O homem colorido explicou depois o que pretendia dizer. Esclareceu-o também sobre os procedimentos com a seringa. Girolme ficou então mais reticente. Nos últimos anos reencontrara-se com a saúde e tinha inclusive levado algumas vacinas. Lembrava-se da dor fina, semelhante a uma mordidela de uma abelha ruim. Porém, o homem salientou de seguida as qualidades médicas e a larga experiência adquirida. Aos poucos, Girolme foi acreditando que aquela seria de facto uma excelente oportunidade para se reencontrar com o seu passado perdido. Por fim, já de semblante carregado, o homem colorido avisou-o que somente ele poderia ser o seu fornecedor. Girolme anuiu em desconhecimento, sorrindo. Não sabia ainda se iria repetir, mas estava ansioso por experimentar. Entretanto, o homem colorido começou a aquecer com um isqueiro o frasquinho onde estava o produto.

– Como é que se chama isso branco? – perguntou Girolme.

– Heroína. Veja lá que é tão boa e importante que até lhe puseram um nome a condizer. Já agora, como é que o senhor se chama?

– Eu sou o pastor Miguel Girolme.

– Com que então pastor, hem?

– Eu também já fui doutor… uma vez. Mas prefiro ser pastor. Sabe… são gostos – completou Girolme.

– E os gostos não se discutem, meu amigo. Eu por mim tanto sirvo um doutor como um pastor. Se é pastor, a partir de hoje vai ter o dobro das ovelhas. Sente-se aqui e arregace as mangas desse braço; dentro de segundos vai ter o que sempre quis!

Girolme sorriu e fez como o homem colorido lhe instruíra. Nesse instante, o homem deitado ao lado desatou a tossir e disse por fim, num tom de voz tendencialmente firme, à medida que ia juntando forças que a ressaca dispersara:

– Não faças isso. Vais arrepender-te… para o resto da tua vida.

Num impulso de desconfiança, Girolme puxou o braço para trás e, sem saber o que dizer ou fazer, sorriu apenas.

– Não ligue ao que ele disse; ele está a sonhar – tentou dissuadi-lo o homem colorido, num tom de voz baixo e insidioso, enquanto puxava o líquido para a seringa.

Sombras de Silêncio #317

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