Sombras de Silêncio #311

Pela manhã, quando despertou, Girolme ainda demorou algum tempo até reconhecer onde estava. Lembrou-se depois do que acontecera no dia anterior, em particular do encontro indesejável. A noite tinha sido demasiado severa e nem a cobertura da escadaria o poupara de uma gripe que ameaçava com espirros fulgurantes. À medida que o fervor se foi diluindo, o medo e o frio tinham-no mantido num limbo de consciência entorpecida. Segurava o pífaro numa das mãos e na outra mantinha o relógio, como se pretendesse amenizar harmoniosamente a passagem do tempo.

Levantou-se depois e prosseguiu até à rua, parando à espera que o caminho se iluminasse por magia. Uma velhinha, vestida de negro e com um xaile a tapar-lhe os cabelos brancos, passou por ele e benzeu-se de pronto, abanando a cabeça em sinal de reprovação. Ao vê-la, Girolme benzeu-se também e seguiu na mesma direção que ela levava. Considerou que em caso de dúvida dever-se-ia seguir as pessoas de Deus, em particular os mais velhos, por saberem mais da vida e das suas circunstâncias. Passou-a ao fim de meia dúzia de passos e cumprimentou-a com um sorriso sem retorno.

Girolme seguiu a rua durante quase uma hora, subindo e descendo vielas, até que chegou a um miradouro com uma vista abrangente sobre um vale. Do seu lado, as casas empoleiravam-se num frenesim incompreensível. Mais abaixo, a terra estava enfeitada de materiais, desde plásticos a metais. Parecia que a natureza tinha encontrado um sítio para florescer utilidades. Encostado à parede do miradouro estava um fogão muito parecido com o que Girolme tinha no apartamento. Pelo terreno estavam também distribuídos pequenos grupos de pessoas; outras aparentavam deambular sem rumo, dando leves impressões e recebendo considerações pesadas.

Pareceu a Girolme que aquela seria uma grande família, vivendo debaixo do teto de Deus e desenrascando-se conforme a vida ia escrevendo as suas histórias. Notou então do seu lado esquerdo a existência de um prédio em ruínas, com pessoas a entrar e a sair, de acordo com uma liberdade geral. Do outro lado do vale crescia uma mata de pinheiros que ocupava toda a encosta. Parecia que o local tinha sido repartido por uma legalidade divida: de um lado ficavam os homens e as preocupações; do outro estava a natureza e mais abaixo viviam aqueles que tinham escolhido o equilíbrio entre os dois mundos. Parecia até que havia uma qualquer barreira mágica que impossibilitava a mistura.

Sombras de Silêncio #311

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