Sombras de Silêncio #309

Enquanto Girolme era levado para trás do prédio, começou a ouvir-se o badalar de vários relógios em simultâneo que depois se transformaram numa melodia harmoniosa, contando todos os momentos que perfaziam uma vida. Pararam depois, rodeados pela escuridão, e Chico mandou que Girolme se encostasse à parede, apontando-lhe a navalha ao pescoço.

– Fecha os olhos.

Girolme revezou-se em pedidos de clemência, entremeando com soluços desesperados. O homem mandou-lhe depois um pontapé violento e acrescentou:

– Fecha os olhos já!

Girolme fechou os olhos e tentou imaginar uma senhora, vestida de branco, com o cabelo alourado pela devoção, emanando uma luz mais branca que o sol, suspensa em cima de uma azinheira e envolta por uma nuvem. Quis apostar mil promessas e desejos, mas o momento pareceu-lhe demasiado curto e desesperado. Acabou apenas por se manter agarrado à Sua imagem, sem tempo para mais fantasias ou experiências finitas. Ouviu depois o som metálico da navalha a embater na parede, mesmo ao lado do seu ouvido. A lâmina partiu-se em vários fragmentos, que lhe rasparam levemente na cara. Enquanto Girolme se mantinha de olhos fechados e sem saber o que acontecera, Chico desatou a chorar e aceitou por fim que toda a raiva do mundo não fazia dele um assassino; tampouco lhe preenchia o vazio. Passou depois as mãos pelo rosto e esmagou as lágrimas. Girolme mantinha-se de olhos fechados e com as pernas a tremer.

– Como é tu te chamas? – perguntou Chico, com a mão a sangrar, os dentes a ranger e a cólera a desanuviar.

– O quê? – perguntou Girolme, com um olho entreaberto.

– O teu nome?

– Eu sou o pastor… Miguel Girolme – disse depois de um ligeiro interregno em que aproveitou para recuperar o fôlego e a esperança.

– Dá-me a chave do teu apartamento! – ordenou de seguida Chico.

– O quê?

– Mas tu és moco?! Dá-me a chave do apartamento, já! – retorquiu o homem, num crescendo de nervosismo.

– Mas… ‘tá bem, aqui tem.

Sombras de Silêncio #309

Comentários