Sombras de Silêncio #303

Empolgado, Girolme contou então de como veio a conhecer o doutor António em Coimbra. Revelou também que, muitos anos depois, o reencontrara em Lisboa. Afirmou por fim que desconfiava que tudo estaria melhor se ele ainda estivesse vivo e mandasse no país. Bernardo parou de estupefação e ficou por alguns instantes a tentar desacreditar tudo o que Girolme revelara. Sabia que o amigo estava muito bem relacionado com o Estado, mas nunca imaginou que poderia chegar até à sua maior instância ideológica. Não conseguiu suster a sua incredibilidade e perguntou-lhe repetidamente se o que ele dissera era verdade, desconfiando que a imaginação fértil do amigo lhe tivesse pregado uma partida. Girolme não possuía muitas certezas na vida, mas agarrava-se com determinação às que tinha e confirmou-o por várias vezes. Bernardo permaneceu inquieto e pediu-lhe que pormenorizasse mais a história. Girolme assim fez. Estava tão orgulhoso e empenhado como se estivesse a escrever uma carta de referências sobre o amigo a Deus.

– Mas olhe que ele também fez muito mal. Está a ver esta gente?

Girolme, mal o escutou, susteve o passo e quis contrariar a difamação, acabando por responder apenas:

– Isso lá pode ser! devemos estar a falar da mesma pessoa.

– Olhe que estamos. Você já me conhece há algum tempo; não ganho nada em tentar enganá-lo. Eu acredito perfeitamente que, para si, o homem tenha sido boa pessoa. Mas só eu conheço dezenas de pessoas que sofreram e morreram à conta dele. Ele deixou o país numa guerra que não podemos ganhar, isolados do mundo, cheios de fome e de frio – continuou Bernardo. – Sabe, ele era Presidente do Conselho de Ministros e era ele quem mandava no país. Mandou prender…

– Pare, por favor, eu quero ouvir – gritou Girolme, perturbado.

Girolme agonizava por escutar um amigo falar mal de outro amigo, em particular pelo facto de um já não poder contrariar, ou esclarecer, as ofensas.

– Está a ver, muitas das vezes a verdade não interessa. O que interessa…

– Eu acredito na verdade que eu quiser! – interrompeu de pronto Girolme.

– Peço desculpa. Você… não sabia e eu… não tenho o direito de estar aqui a… dizer estas coisas. Acredite no que quiser, mas olhe que eu não estou aqui para o enganar. Nem eu, nem estas pessoas todas!

– Eu sei, desculpe – anuiu Girolme, oferecendo-lhe depois um aperto de mão.

Sombras de Silêncio #303

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