Sombras de Silêncio #297

Girolme ergueu-se de pronto, envergonhado por ter sido apanhado num momento íntimo, foi até à porta e enfiou o pífaro nos lábios, largando sopros tímidos e descontínuos. Lá fora, a luz ia rasgando a escuridão e os carros começavam a transitar.

Aos poucos, os moradores foram saindo para os seus afazeres. Para todos, Girolme abria a porta e oferecia um sorriso e o bom dia. À medida que a manhã foi avançando, levantou-se um burburinho no prédio e correu pela escadaria a novidade que alguns militares se tinham revoltado. As famílias alternavam entre os andares e cada pessoa ia acrescentando um ponto na história. Juntaram-se depois alguns homens no átrio da entrada e puseram-se a discutir o que haveriam de fazer. Girolme ia escutando atentamente, mas nem por isso entendia o que estava a acontecer. Enquanto uns advogavam que o melhor seria esperar por desenvolvimentos e escolher depois o lado certo da liberdade, outros vincavam que estavam moral e profissionalmente obrigados a defender a pátria de uma revolução.

Ato contínuo, os homens revezavam-se em argumentos, os telefones tocavam e as mulheres acudiram ao átrio com ordens para que os maridos seguissem de pronto para as instalações da PIDE, na rua António Maria Cardoso. Aos poucos, os operacionais lá foram saindo, enquanto as mulheres regressaram para os apartamentos. Girolme continuava sem perceber o que estava a acontecer. Alheado de tudo o que efervescia à sua volta, resolveu adiantar-se ao seu horário e começou, no último andar, a limpar a escadaria. À medida que ia descendo aproveitava para esclarecer as suas dúvidas e quando chegou e ao rés-do-chão estava sobretudo curioso para saber o que iria acontecer na apregoada revolução.

Apesar de as mulheres estarem receosas, Girolme quis acreditar que a vida não mudaria assim tanto. Subiu depois a escadaria e entrou no apartamento, divagando pelas incertezas. Acabou por parar na casa de banho, defronte do espelho. Acompanhou as linhas enrugadas da cara e seguiu depois o enfiamento de pelos do bigode; na cabeça, o cabelo, que tinha clareado com o tempo, havia resistido à queda. Fechou os olhos e tentou lembrar-se de alguma imagem da sua cara nos tempos idos da sua juventude, como se por alguma magia pudesse, ao abri-los, reencontrar o que a passagem do tempo vulgarizou. Mas nada aconteceu, mantendo-se preso num marasmo inconfortável.

Sombras de Silêncio #297

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