Bernardo julgou por bem afastarem-se um pouco e foram para um outro banco. Logo que se sentaram, Bernardo voltou a explicar o seu plano de distribuição. Girolme percebeu-o finalmente; pegou depois nas correspondências e foi testar a aprendizagem, conseguindo fazer a entrega sem qualquer problema. Regressou depois para junto de Bernardo, contentíssimo pelo feito extraordinário. Concluiu então que algumas profissões estavam muito mal distribuídas; achava que muitos professores deveriam ter sido sapateiros e aquele homem é que deveria ter sido professor. Mediante tamanha graça, Girolme considerou que aquele encontro deveria ter sido obra de Deus.
– Olhe que se calhar não foi Deus – alertou-o Bernardo.
– Nã foi Deus? Olhe que foi; ‘tá tudo escrito. É Ele que nos guia. Nós somos as ovelhas e Ele é o pastor. Eu, pela minha parte, até que já fui pastor. Mas uma coisa é ser pastor na Terra e outra coisa é ser pastor no Céu – respondeu Girolme, refugiando-se depois num sorriso acima de qualquer suspeita.
– Talvez seja um pouco mais complicado do que isso; talvez Deus não exista – respondeu Bernardo, num tom introspetivo.
A sentença acabou por despertar a curiosidade de Girolme. Poderia não saber muito do mundo, mas ao notar a descrença de Bernardo considerou que o poderia ajudar. Os dois foram trocando depois pontos de vista sobre o assunto. Girolme estava incrédulo; desconhecia inclusive que se podia repensar a existência de Deus! Depois de destrinçar as razões pelas quais julgava que ser ateu também não fazia sentido, Bernardo concluiu que a humanidade deveria aceitar o agnosticismo como se fosse uma dádiva de um deus ausente. Girolme ia acompanhando o discurso do homem conforme a compreensão permitia, intervindo quando algum conceito lhe arranhava a fé. Começou depois a duvidar do que ele dizia quando Bernardo lhe contou que noutras partes do mundo se rezava a outros deuses. Girolme nunca ouvira falar em tamanho disparate!
Como já se fazia tarde para o serviço que ainda tinha para fazer, Girolme despediu-se então de Bernardo com a promessa de reencontros futuros e regressou ao prédio. Passou o resto da tarde a pensar na conversa e não se coibiu mesmo de esclarecer algumas dúvidas com um morador do prédio, que lhe confirmou a existência de várias religiões. Tal acabou por deixá-lo ainda mais apreensivo. Naquela noite, dormitou a impaciência à espera de um reencontro com Bernardo. Porém, Bernardo não apareceu no parque no dia seguinte.