Sombras de Silêncio #288

Outros dias se juntaram e Girolme tentava fazer o que Carlos lhe tinha dito, esperando ansiosamente por notícias que lhe travassem a melancolia. Não obstante o empenho abnegado, a adaptação não foi fácil. Girolme tinha de aprender a reviver em sociedade, com os seus ritos e ritmos. Alguns aspetos apenas foram ultrapassados muito tempo depois de lá ter chegado.

A cada promessa de um novo dia, Girolme descia até à entrada do prédio. Ali ficava de plantão, abrindo e fechando a porta com o sorriso. Aos poucos, a história do «amigo vagabundo do presidente» foi-se espalhando pelos moradores e todos lhe devolviam o sorriso. Sempre que lhe perguntavam o nome, ele respondia que era o «pastor Miguel Girolme», acrescentando de seguida que o poderiam tratar apenas por «Girolme». Apesar do discurso desengonçado, ficou de imediato acima de qualquer suspeita ou escárnio descarado por força da imagem inquestionável do patrono. Assim, e apesar de nos primeiros dias misturar a correspondência, ninguém se atreveu a acusá-lo do que fosse. Inclusive, os moradores não se importavam de corrigir a entrega. Ajudaram-no também muito no trato do dinheiro e nas pequenas compras. Girolme ia agradecendo a atenção dispensada, desconhecendo as crónicas romanceadas que explicavam tal ligação inusitada. A primeira lavagem do chão também não correu bem; deu-se uma pequena inundação e houve apartamentos onde a água chegou mesmo a entrar. Por não saber cozinhar, numa altura em que ainda desconhecia a funcionalidade do fogão, Girolme acabou por recuperar um hábito antigo e todos os dias comia uma sandes de queijo e marmelada. Com o tempo, alguns moradores passaram também a oferecer-lhe sopa.

Cerca de quinze dias depois da sua chegada, numa conversa de passagem, Girolme ficou a saber que o doutor António tinha sofrido um pequeno acidente numa cadeira, mas estava tudo bem. Percebeu então que fora por isso que ele ainda não o tinha chamado, conforme combinado. Cerca de um mês depois, Carlos apareceu finalmente no prédio e desculpou o atraso com a pouca disponibilidade. Estava incumbido de devolver a cidadania a Girolme e levou-o a uma conservatória. Agarrado a uma memória que jamais queria deixar, Miguel ainda insistiu que o nome «Girolme» aparecesse no papel, mas tal não foi permitido. Acabou por ficar apenas «Miguel Fernandes», com a idade de 60 anos, feitos no primeiro dia do ano. Curiosamente, tal não estava muito longe da verdade.

Sombras de Silêncio #288

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