Sombras de Silêncio #272

Seguindo uma sugestão de Girolme, começaram por oferecer os seus préstimos como pastores a alguns criadores de gado. Porém, naquela altura do ano, o trabalho era pouco e nem mesmo de forma gratuita os aceitaram. À medida que os infortúnios se iam acumulando, os dois sentiram necessidade de enveredar por alternativas mais promissoras. Foram então falar com um dos padres da Igreja de São Francisco, rogando-lhe que lhes proviesse um emprego como coveiros. O prior levou-os então à Capela dos Ossos e disse-lhes, em tom de brincadeira, que a cidade não precisava de coveiros. O aspeto fúnebre do local conferiu a Girolme um tal receio que nem sendo pago aceitaria trabalhar naquele sítio sem piedade e escondido de Deus. Bilinho mostrou-se um pouco cético e resolveu contrapor a recusa, adiantando que já trabalhara tanto na construção como no enterro, pelo que era o homem ideal para a função. O prior respondeu então que o lugar já estava ocupado, mas não descurou a possibilidade de arranjar mão-de-obra para o Senhor e enviou-os com um recado para Valverde, onde o coveiro local tinha falecido.

Chegados ao pacato lugar, o vigário aceitou-os na condição de abdicarem do salário e receberam os préstimos em refeições. Como os mortos tardavam em aparecer e a fome era diária, uma semana depois decidiram continuar a viagem. Todavia, foram contratados para cavar terra. Outros agricultores foram requisitando os serviços dos dois, a troco de refeições, e foi assim que Bilinho e Girolme permaneceram em Valverde durante quase um ano. Entretanto, e como a população estava satisfeita com os seus préstimos, numa tarde soalheira de sábado, alguns habitantes prontificaram-se a construir um pequeno barracão, de madeira e chapa, encostado a uma parede do cemitério, que passou a servir como arrumação para algumas ferramentas e como dormitório para os dois. Durante todo o tempo que lá estiveram apenas por uma vez tiveram de abrir uma cova.

A vida dispõe-se sempre a remediar os preceitos que o tempo vai expondo, como se tudo fosse apenas um jogo de egoísmos consentidos. Havia já algumas semanas que Bilinho se sentia muito incomodado com um cão que durante a noite ia urinar para um sombreiro que ele insistia em abrir junto ao barracão, com o intuito de afastar os espíritos que pudessem andar perdidos pelo cemitério. Numa dessas noites, Bilinho decidiu ficar de guarda ao meliante. Quando o canídeo se aproximou e começou a trasfegar, Bilinho encetou uma perseguição que pôs em alvoroço toda a aldeia. No meio da confusão, houve até tiros de espingarda.

Sombras de Silêncio #272

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