Sombras de Silêncio #246

Apesar do carinho que nutria por ele, Ana Maria não estava disposta a arriscar uma relação que sabia inconsequente. Todavia, não suportava vê-lo a ser tratado daquela maneira indigna. No dia de Natal desse ano, quando lhe trouxe o jantar, tentou incitá-lo a fugir dali e a regressar a Portugal. Alertou-o ainda para o facto de a sua permanência em Espanha ser arriscada, dado que mais cedo ou mais tarde seria apanhado. Miguel ficou estarrecido com a proposta, mas guardou a sua tristeza para a solidão da noite, sorrindo e esclarecendo que não sabia sair dali. Ana Maria prometeu então que o iria ajudar.

A cada dia que passava, Miguel pesava os prós e os contras de mais uma escapadela, carregando uma incerteza cujo deslinde insistia em adiar. Por um lado, desde o episódio do burro passara a ter uma vida sofrível e tormentosa. Por outro lado, temia que fosse preso ao regressar Portugal. Apesar de suspirar por momentos de proximidade com Ana Maria, Miguel sentia que ainda tinha uma namorada, perdida no espaço e no tempo, mas presente nos sonhos e nas histórias.

Miguel manteve o estado de incerteza até ao final da apanha da azeitona. Apenas no último dia de janeiro do ano seguinte, quando Ana Maria lhe veio trazer uma sopa, Miguel confirmou que decidira fugir e regressar ao seu país. Estavam sentados em duas cadeiras velhas que tinham sobrado da sala. Ela, que ficara entristecida, revelou-se contente pela decisão e apoiou-o, pondo-lhe a mão sobre a dele. Porém, não evitou uma lágrima, que o deixou ainda mais atarantado e sem saber o que fazer ou dizer. Acabaram apenas por abraçar-se.

No dia 12 de fevereiro, depois de uma tarde a plantar batatas, Ana Maria levou-lhe a sopa habitual, mais uma broa e um queijo para a travessia. Formalizaram então uma despedida tímida e sentida, guardando para si as palavras, o carinho e o amor que dedicavam ao outro às escondidas. Beijaram-se na face e abraçaram-se novamente. Ana Maria voltou para a casa e Miguel subiu ao moinho. Ao lá chegar, foi buscar o dinheiro que lhe restava, pouco mais de cem pesetas. Sentou-se a olhar para as notas, desiludido por não saber escrever. Se soubesse, escreveria uma palavra de amor em cada nota para ela ler. Ficou-se por uma inefabilidade forçada.

Na manhã do dia seguinte, Miguel não apareceu para alimentar os animais. Pablo suspeitou a ausência do português e foi até ao moinho. Apenas encontrou um coração desenhado no chão, rasgando a quietude da farinha, demasiado frágil para subsistir à brisa da mudança.

Sombras de Silêncio #246

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