Sombras de Silêncio #245

No final, Pablo cobrou-se tanto pela morte do burro, como pelo fundo de garantia para precaver a teimosia do boi. Porém, o animal tinha uma preguiça insuperável e Miguel tinha de o encorajar com vergastadas de vide. A natureza acabou por devolver o trato áspero. Mais tarde, antes do anoitecer, Miguel e Pablo conduziram animal de volta para o casebre. Miguel seguia à frente, puxando a corda presa ao focinho do boi, que aproveitou a oportunidade para lhe pregar uma marrada que o atirou por alguns metros. Por sorte, não lhe acertou com os cornos, pelo que Miguel apenas ficou com mazelas passageiras.

A partir do episódio do burro, Miguel passou a viver atormentado pelas palavras, ordens e ações do patrão, que nunca demonstrou vontade de lhe perdoar a ofensa. Na ausência do pequeno-almoço habitual, acabou por ter de se remediar com as abóboras que dividia com os outros animais. Deixou também de poder almoçar e jantar na casa, estando inclusive proibido de lá entrar. Ana Maria passou a trazer-lhe as refeições até à parreira, num prato de lata idêntico aos que existiam na prisão. Cada momento de proximidade com ela passou a ter um significado diferente. Naquilo que não dizia, Miguel foi carregando um mar de ideias, cujos olhares afluentes olvidavam qualquer vã arrelia. Se de dia voava entre as asas de um sonho demasiado envergonhado para ganhar outros contornos, à noite mendigava por entre as memórias longínquas de um amor perdido; recordava os tempos passados com a sua princesa e adormecia sempre com remorso, martirizando-se pelos pecados da consciência.

Ana Maria também ia desfilando vontades e sonhos. Porém, reconhecia que a razão inviabilizava qualquer desejo. Aliás, havia já algum tempo que ela despertara para tal, divagando em pensamentos o que proibia ao corpo. Miguel era distraído e apenas encontrou um interesse persistente naquele olhar piedoso aquando do infeliz incidente, mas foi o suficiente para lhe revirar as ideias. Entre as sombras, Miguel foi construindo vivências alternativas, inspiradas noutros tempos. No final de cada divagação, restava-lhe o lamento de viver apenas uma vida. Parecia-lhe um desperdício de sentimentos e vontades repreendidas.

Sombras de Silêncio #245

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