Sombras de Silêncio #242

Em meados de setembro, no seu quinto ano na quinta, Miguel redescobriu-se de uma maneira inesperada. No entanto, os acontecimentos que se precipitaram naquele dia tiveram origem alguns meses antes. Anita, que se transformara numa mulher, começou a engendrar planos para quebrar a sua monotonia diária. Como a sua vontade apenas tinha prevalência sobre o português, aos poucos, e sempre que isso não entrava em rota de colisão com as ordens dos pais, começou a moldá-lo para ser o seu criado pessoal. Convenceu-o inclusive a deixar crescer o bigode.

Naquele dia, ao início da tarde, estava um calor incaracterístico que convidava ainda mais à sesta. Miguel veio até à parreira e por lá se estatelou no chão a remoer nostalgias. De olhos cerrados, mas ainda de consciência desperta, pressentiu a aproximação de Anita. Ela trazia num vestido vermelho e ordens para o fazer levantar. Pediu-lhe que a ajudasse num trabalho que o pai lhe incumbira, tentando convencê-lo que deveriam ir buscar os sacos de farinha de trigo ao moinho com o trator. Miguel ainda contrapôs, assegurando-lhe que apenas lá estava um saco de cinquenta quilos, mas que ele seria capaz de o trazer às costas. Anita ripostou com a ordem do pai e ordenhou-lhe que a ajudasse. Miguel levantou-se e foram até ao barracão onde estava o trator e o carro. Ela mandou-lhe então subir para o trator, mas Miguel deixou-se ficar quieto e receoso, lembrando-se de uma advertência de Pablo. Anita contrapôs que era a vontade do pai que ele aprendesse a conduzir, ameaçando ainda revelar a sua recusa. Sem saber o que fazer, Miguel anuiu e subiu para o trator. Anita alternou então de simpatia e garantiu-lhe que ela iria ensiná-lo a conduzir. Assim, Miguel ligou o trator. O barulho despertou a curiosidade de Ana Maria, que se levantou e foi ver o que se passava.

Pelas orientações de Anita, Miguel engatou a primeira velocidade, largou o pedal da embraiagem e carregou no acelerador, mas assustou-se com o impulso da máquina. Num impulso espantadiço, carregou a fundo no acelerador e guinou na direção da casa. Por instinto, Miguel rodou o volante e esquivou-se de entrar pelo quarto onde Pablo e Isabel se vestiam à pressa, mas foi de encontro do poço de água e precipitou-se contra o burro, atropelando-o. O trator parou com o embate e Miguel apressou-se a saltar para o chão, perante os zurros angustiantes do animal, encarcerado debaixo das rodas dianteiras do veículo. A nora, apesar de desequilibrava, ainda se conseguiu aguentar. Os gemidos do burro desvaneceram-se depois numa morte excruciante.

Sombras de Silêncio #242

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