Sombras de Silêncio #229

Como medida de segurança face aos muitos dissidentes e fugitivos do regime, para além de controlarem os pontos fronteiriços, os agentes mantinham acordos com alguns estalageiros. A troco de alguns dividendos, recebiam informações de possíveis fugitivos. Com o Toino Gato, o esquema era ainda mais sofisticado. O estalageiro prometia aos foragidos um bilhete de identificação estrangeiro a troco de uma fotografia, que levava depois aos guardas para análise. No final, poderia ficar com o dinheiro ou outros bens deixados pelos clientes. Contudo, não ficou com o Volvo, por ser demasiado valioso e porque seria reclamado.

Miguel desconhecia o mundo e não sabia muito de si, mas ao pisar a outra margem sentiu que conseguira realizar um feito extraordinário. Tendo em conta a apregoada impunidade, pressentiu que não precisava de se preocupar mais com a Guarda. Todavia, existiam outros perigos na clandestinidade, que Jaquim lhe especificou. Despediram-se e Miguel seguiu pelo caminho indicado durante quase duas horas, cruzando os campos de trigo, milho e oliveiras. A lua cheia permitiu-lhe o vislumbre possível do percurso, deambulando pela terra espicaçado pelo medo. Chegou então ao moinho de vento referenciado e encostou-se ao lado da porta. As velas tinham sido votadas à inércia por um pedregulho que as segurava. Tentou esconder-se do frio como podia e por lá se deixou ficar até ao amanhecer. Pela manhã, estava tão cansado que nem se apercebeu que a luz já invadira a planície e deixou-se ficar enrolado num sonho agradável.

– Quem é você?

– ¿De dónde éres?

Como não obtinham respostas, os dois homens andrajosos dispensaram-lhe um leve pontapé nas pernas que acordou Miguel. Passou as mãos pelos olhos, afastou a remela e clareou a consciência. Ao encará-los, Miguel assustou-se e escondeu o olhar. Lembrou-se depois de dizer que vinha da parte de Jaquim dos Óculos. Gabriel, o português, de ar moreno e corpulento, deitou-lhe então a mão e disse-lhe que o levaria ao dono da quinta. Carlos, o espanhol, mantinha o olhar desconfiado. Ambos pareciam ter já mais de trinta anos.

Desceram o monte e chegaram à casa, inserida numa quinta isolada, a leste de San Benito de la Contienda. A casa tinha uma única assoalhada, dividida entre três quartos, uma cozinha e uma sala ampla, que dava para o campo e para cada uma das outras divisões. Ao redor da habitação havia laranjeiras, macieiras, figueiras e um poço de água com uma nora. Junto à porta subsistiam dois vasos muçulmanos com linhas azuis entrelaçadas. Ao lado da casa havia algumas videiras dispostas sobre uma armação de ferro. Por detrás da casa resistia um barracão onde eram guardadas as alfaias agrícolas e outros objetos de trabalho, assim como um trator e um Citroën 2CV.

Sombras de Silêncio #229

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