No final do trabalho, Jaquim e Miguel foram jantar. Jaquim então aproveitou para lhe explicar alguns pormenores da travessia e do que deveria fazer depois. Apesar de ser ainda novo, o alentejano vivia sozinho. A esposa morrera alguns anos antes com uma maleita nos pulmões, deixando-o numa solidão sustentada e sem descendência. Miguel ia escutando com muita atenção, tanto as infelicidades do homem como os pormenores da viagem e do lugar para onde ia. Ainda assim, sobravam-lhe bastantes dúvidas que a timidez não deixava desanuviar.
Os dois homens saíram de casa por volta das dez horas e seguiram em direção a sul ao encontro do rio Guadiana. Depois de andarem cerca de meia hora pela margem chegaram aonde o alentejano tinha o barco escondido. Iniciaram então a travessia, mas não foram de imediato ao encontro da outra margem. Ao invés, deixaram-se levar pela corrente. Não fosse a larga experiência de Jaquim, a escuridão levá-los-ia até ao Pulo do Lobo. Apesar do frenesim e do medo, a ideia de não precisar mais de se esconder reacendia a esperança de Miguel numa vida melhor. O destino desconhecido parecia-lhe irrelevante e a vontade era definitiva.
Se Miguel soubesse que já não era procurado pela Guarda nunca teria feito a travessia do rio e da vida. Logo a seguir à fuga dos onze reclusos do forte de Peniche, as autoridades empreenderam uma caça ao homem de dimensão nacional. Os processos individuais passaram entre os diversos departamentos de informação e defesa do Estado. Era fundamental não os deixar cruzar a fronteira. No turbilhão de investigações, alguém dos serviços centrais da polícia política descobriu que Miguel não correspondia à informação recolhida sobre Lenine da Silva. Um dia depois, e como não conseguiram descortinar quem era o homem que passara quase vinte e cinco anos na prisão, decidiram riscar o seu nome da fuga. A informação foi também atualizada nos pontos de fronteira, incluindo em Elvas. Miguel passou a ser um homem sem contas com a justiça.
