Sombras de Silêncio #99

Inadvertidamente, certo dia, quando estava a dar corda ao prezado relógio, a mãe notou-o e perguntou-lhe onde o encontrara. Miguel disse a verdade, sem referir a cantiga ou outros pormenores. Joana pegou-lhe e reconheceu-lhe os contornos de um passado mais citadino. Devolveu-o depois e lembrou o filho que o deveria guardar com carinho, temendo que aquele fosse o seu único legado consciente.

Em finais de junho, enquanto arrancava as batatas, Joana estarreceu ao ver chegar um militar a cavalo. Segurou-se à enxada e sentiu o sangue a evaporar-se. Miguel dormia a sesta no quarto.

– É a senhora Joana, esposa do primeiro-sargento Fernandes? – perguntou o jovem.

– Sou – disse ela, após alguns momentos de impasse, com a voz trémula.

– Tenho aqui uma carta para si.

A certeza de que os mortos não escrevem cartas fê-la recuperar o ânimo e correr para o homem. Perguntou-lhe depois como é que estava o marido, ao que o homem respondeu que o melhor seria ler a carta. Joana pegou-lhe e tateou a saudade, indo depois para casa sem se lembrar de agradecer ao mensageiro. Já em casa, sentada à mesa da cozinha e enquanto rasgava o envelope, reconheceu que não sabia ler. Retirou a folha suja e rabiscada, reconheceu a grafia e ficou por momentos a imaginar os seus dizeres. Voltou a sair de casa, mas o militar já tinha ido embora. Ocorreu-lhe depois que António, o senhor que se ocupava da bilheteira no pequeno apeadeiro de comboios, poderia ajudá-la. Correu para lá e esperou impacientemente que o comboio das três da tarde partisse em direção ao Entroncamento. António era um homem de meia-idade, de rosto fino e prolongado. Quando a viu, puxou de um cigarro, seguiu ao seu encontro e perguntou-lhe por novidades do marido. Joana lançou-lhe um olhar envergonhado e mostrou-lhe a carta. O homem julgou que o ar tristonho significava que algo de ruim acontecera ao amigo. Ficou depois aliviado por saber que ela era iletrada e prontificou-se a ler-lhe a carta do marido, convidando-a também a entrar para o posto.

Sombras de Silêncio #99

Comentários