Sombras de Silêncio #98

De início, Miguel apenas ficou com a última palavra na memória, mas através de várias tentativas conseguiu decorar os versos. Ainda que não compreendesse as formas rendilhadas das palavras e o seu significado, gostou muito de a aprender. Julgou até que o pai seria o professor que ele deveria ter tido. Para que não se esquecesse das palavras, Miguel prometeu repetir a canção diariamente. E cumpriu. Caso a guerra o retivesse, Carlos quis acreditar que talvez o filho pudesse desvendar o enigma.

Saíram depois do quarto e foram jantar. O ar resplandecente e altivo de Miguel contrastava com a infelicidade que Joana transparecia, receosa pela vida do marido e pelo futuro de todos. Enquanto comia as batatas, Miguel não tirou a mão esquerda do bolso das calças, acarinhando a melhor prenda que alguma vez recebera e ignorando o ambiente frio e incerto que se abatera sobre a família.

Carlos partiu de comboio nos primeiros dias do mês de junho para Lisboa. Dali apanhou um vapor para a Flandres, no mesmo dia em que os alemães lançaram o primeiro ataque à primeira brigada portuguesa estacionada na frente de batalha. Pelo destino ou pela intervenção do major Gonçalves, que também seguiu para a guerra, Carlos iria liderar um dos pelotões às ordens do tenente Figueiredo. O Corpo Expedicionário Português, que era subordinado do exército britânico, cumprira até ao momento todos os preceitos estipulados. Conseguira resistir às investidas inimigas, mantendo a muito custo as posições conquistadas, apesar dos meios técnicos inferiores e da pouca preparação dos soldados. Nos dias seguintes, os oficiais foram recebendo informações sobre as missões a desempenhar e Carlos acabou por ser inserido na segunda brigada de infantaria, sendo enviado para as trincheiras da frente de batalha.

Em Tancos, Joana e Miguel passavam os dias na esperança de um regresso que foi sendo adiado. Ela deambulava pelos cantos e pelos serviços, receosa que a guerra lhe ficasse com o marido. Miguel, que já se considerava o homem da casa, passava os dias a jogar ao pião e a ajudar a mãe nas tarefas domésticas. Aos domingos, desciam até ao rio e pescavam, usando uma cana que Carlos trouxera do quartel. Apesar das saudades, Miguel gostava muito daqueles ofícios e da nova responsabilidade. Longe iam os tempos em que a escola lhe minguava o espírito.

Sombras de Silêncio #98

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