O fantasma da escola ressurgiu no início de setembro do ano seguinte, ameaçando obliterar novamente a felicidade esquecida da infância de Miguel. Pela manhã, exasperado pela ansiedade, seguiu com o pai para a escola num galope nervoso. Os colegas recordaram-se dele com sorrisos trocistas, que um olhar severo de Carlos acabou dissimular. Porém, ao contrário do ano anterior, Miguel foi capaz de escrever de forma impecável todas as letras, conhecendo inclusive o nome de uma boa parte delas. No final do dia, embora desconfiado, regressou a casa como se fosse um guerreiro vitorioso do alfabeto.
A instabilidade que varria o país e a guerra que assolava o coração da velha Europa estimularam a certeza que Portugal teria de assumir uma posição para salvaguardar os seus interesses. Nesse contexto, as forças armadas iniciaram preparativos para qualquer intervenção. Carlos foi nomeado primeiro-sargento e ficou responsável por um pelotão de trinta e cinco praças, oriundos da recruta obrigatória. Quem também subiu de posto foi o alferes Figueiredo, que passou a tenente, exercendo um segundo comando na companhia onde Carlos estava. Fora-lhe designada uma função compatível com a sua vontade, mas deveria repartir o tempo entre professor e militar. Nas semanas seguintes, para regozijo de Miguel, foi com naturalidade que ele descurou o ensino. Saía da sala pela manhã com deveres propostos e apenas voltava no final da tarde para os corrigir de vara em riste.
Miguel lutava para compreender o sistema numérico decimal, mas a ausência do professor criou-lhe outros obstáculos. Tanto que chegou mesmo a desejar o regresso definitivo da vara de amieiro. Como elo mais fraco de uma cadeia de traquinices, foi envolvido num círculo de diabruras e violência. Os colegas digladiavam-se em imaginação para lhe fazerem mal. Troçavam de insignificâncias, batiam-lhe, metiam-lhe terra dentro das cuecas e atiravam-lhe com o que tivessem à mão. Cada dia era um inferno prestes a acontecer. Pelas promessas de mais violência, Miguel manteve os maus-tratos no anonimato. Em casa, desculpa como podia as marcas no corpo e a roupa rasgada, ainda que muitas das vezes isso descambasse em advertências e açoites dos pais, já que eles julgavam que era por descuido nas brincadeiras. Bastaria que a criatividade para o mal das crianças fosse bem redirecionada e os homens não precisariam de travar tantas guerras.