Sombras de Silêncio #80

– Mas afinal o que é que se passa aqui? – perguntou o tenente, com a firmeza que a graduação lhe permitia.

– Sabe lá, meu tenente, é o filho do Fernandes, que tem tanto de estúpido como de irrequieto – disparou o professor.

– Parece-me ridículo que o alferes precise de correrias para tal. Vem cá, miúdo – ordenou o tenente.

Miguel obedeceu e aproximou-se dele, cabisbaixo. Por indicação do militar, sentou-se depois no seu lugar e prometeu manter-se quieto e calado. Mal o tenente saiu da sala, o professor cresceu três palmos e por largos minutos discursou a sua raiva. De vara em riste, esgrimiu as suas razões contra a atitude provocatória de Miguel e ameaçou-o com mais varadas. Miguel escutava com medo, encolhido na sua pequenez e limitado pela incompreensão. Tudo parecia estar ao contrário do que a mãe lhe prometera. O professor mandou-o depois esticar os braços e abrir as mãos, garantindo-lhe que, caso as retirasse, levaria a dobrar. Quando terminou, o professor Figueiredo tinha dado dez açoites na criança, que chorava como nunca o fizera na vida, amaldiçoando de soslaio a escola e todos os professores do mundo.

Miguel ficou toda a manhã pregado à cadeira e com ordens para não se mexer, falar ou espirrar; não sabia o que significava espirrar, mas não quis perguntar. Quando as outras crianças foram almoçar à cantina, foi-lhe proibida a saída, por estar de castigo. O professor prometeu trazer-lhe uma côdea de pão, ainda que considerasse que o merecimento fosse pouco. O medo cravara Miguel à imobilidade e assim ficou até à vinda dos colegas e do professor. Pela tarde, Miguel continuou sentado na cadeira sem se mexer. Por muito que quisesse fugir, o receio de apanhar mais varadas não lho permitiu. Os outros meninos estavam compenetrados nas contas que o professor pedira para fazerem. Numa das suas rusgas de verificação de erros, o professor passou junto ao insubordinado e cheirou um aroma estranho.

 – Tu mijaste-te?

Miguel continuou calado e enfiou as mãos entre as pernas entrelaçadas, com a cabeça inclinada para a frente, amedrontado. Os colegas começaram de imediato a rir, apontando dedos trocistas para Miguel.

– Julgas que isto é uma pocilga? – perguntou o professor, colérico.

Miguel, que não sabia o que era uma pocilga, permaneceu em silêncio.

– Rai’s ta partam! Que sorte madrasta! Já não bastava ser burro que nem uma porta, também é porco. Quando o teu paizinho vier saberá o que tem!

Sombras de Silêncio #80

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