Sombras de Silêncio #79

Seguindo as indicações do professor, Miguel foi sentar-se na última mesa disponível. Naquele ano não havia outro aluno a iniciar a instrução. Assim, o professor resolveu colocar um quadro de ardósia próximo de Miguel e começou por desenhar as letras do abecedário à medida que as ia pronunciando. Miguel estava encantado com a atenção dispensada. Olhava, admirado, para o giz que o professor usava para fazer os desenhos. Contudo, não compreendia qual seria o propósito de tais esforços. Quando acabou, o professor pediu-lhe que fizesse réplicas das letras no seu caderno. Ordenou depois aos outros alunos que abrissem o caderno e transcrevessem o ditado que iria iniciar, em que descreveria os feitos do condestável D. Nuno Álvares Pereira na Batalha de Aljubarrota. À medida que ia ditando, vagueava pela sala com uma vara de amieiro na mão, sempre pronta para apontar os erros das crianças. Miguel escutava com atenção a história do professor, diferente daquelas que a mãe lhe contava, sobre príncipes e princesas. Foi então que o professor apareceu nas suas costas e lhe mandou uma varada numa orelha. Miguel desatou de imediato numa choradeira de lágrimas e incompreensão.

– O que é que eu te disse para fazeres? Ainda agora chegaste e já estás a aprender a regra do bom viver! – salientou o professor, indignado com a atitude passiva da criança.

Miguel, atarantado com a súbita mudança da atitude do professor, continuou a chorar, clamando pela mãe.

– Agora cala-te! Já chega de espetáculo – ordenou o professor.

Miguel continuou a clamar, o que levou o professor a mandar uma nova varada, alternando de orelha. Para Miguel, a situação ultrapassara os limites da razão e não estava disposto a ficar ali. Saltou da cadeira e quis fugir para longe da pancada, contornando com habilidade as outras mesas. Porém, o professor saiu furioso no seu encalço e os dois correram desenfreados pela sala, provocando a risada das outras crianças. A algazarra extravasou as paredes da sala e um tenente que passava decidiu abrir a porta, pasmando ao ver o camarada em perseguição do catraio. Ao aperceber-se da intromissão, o professor quedou-se. Por inerência, Miguel também parou, agradecido pela aparição daquela alma caridosa.

Sombras de Silêncio #79

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