Por vezes, a brisa corria mórbida a jusante. Levava notícias de que alguém desaparecera, na esperança que o corpo pudesse encalhar, fosse devolvido à família e emprestado a Deus. Cerca de uma semana antes da primeira Páscoa que os Fernandes passariam em Tancos, as águas tiraram a vida ao pai e a quatro filhos de uma família de Constância, deixando a mãe sozinha para uma vida amargurada. O pequeno bote não susteve as águas traiçoeiras, a montante do castelo e jusante do destino. O luto enegreceu a vila e até as festividades em honra a Nossa Senhora da Boa Viagem foram antecipadas, como forma de homenagear as vidas perdidas. Carlos, Joana e Miguel também acudiram a Constância. Em procissão, percorreram as ruelas da vila, pesarosamente entristecidas pelo destino manhoso. Os homens trajavam o seu melhor fato, enquanto as mulheres e raparigas iam todas de branco, com um véu a tapar-lhes a cabeça. À frente seguiam algumas crianças, vestidas de anjos. Logo a seguir, alguns marítimos carregaram o andor até às margens dos rios, onde outros esperaram pacientemente pela bênção dos seus botes e barcos.
Dois anos depois da mudança, a calmaria provinciana substituíra o reboliço citadino. Porém, a morte voltou a subir o rio. Através de um telefonema para o quartel, Carlos ficou a saber que a sua mãe falecera. Joaquina Fernandes, ao descer do sótão, escorregou na escadaria de madeira e rolou indefesa até à cozinha. Bateu com a cabeça no chão enrubescido, fraturando o crânio e a vida. Acabou por ceder às sombras no dia seguinte, deixando-se levar depois de sessenta e poucos anos de trabalhos. Muitas lágrimas correram em Vila Nova da Rainha no dia do funeral. No funeral, Miguel consciencializou-se das diferenças entre a vida e a morte, que ele depreendeu como um sono profundo.
Manuel, Arnaldo, Cina e Simão regressaram a casa no final do dia. As mulheres foram fazer o jantar para a cozinha e Joana aproveitou para descrever alguns pormenores da vida lisboeta, para o deleite etéreo de Cina. Na sala, Manuel quis inteirar-se da vida do filho militar, sublinhando que muito o orgulhava o êxito que ele alcançara. Atarracado no sofá, Arnaldo atrofiava a cada elogio alheio, maldizendo a sua sorte por ter passado a vida a ajudar os pais sem que isso lhe fosse devidamente reconhecido.