Sombras de Silêncio #64

Miguel, que recusara falar nos tempos da monarquia, pareceu ganhar alguma inspiração no movimento golpista; soltou o seu primeiro e quase impercetível «mamã» quando o frio invernal ameaçava tomar conta do país. Aos poucos, o miúdo foi balbuciando motivos de espanto e orgulho para os pais babados, que iam humedecendo a alma com salpicos de alegria e esperança.

No quartel, os militares republicanos ganharam maior relevância. Carlos passou a deter acesso a gabinetes de outras patentes que até então lhe estavam vedados. Os homens que fizeram oposição ao regime durante muitos anos viram por fim o corredor do poder iluminado. Mas não esqueceram aqueles que arregaçaram as mangas pela república. Os monárquicos mais crentes, que ainda se agarravam aos cargos, foram sendo substituídos. Outros, por verem ameaçado o seu ganha-pão, enveredaram também pela mudança e passaram a fazer juras de amor eterno à república, renegando ao sangue azul e proclamando-se republicanos dos sete costados.

O tempo e a amizade revelaram a Carlos um dos entretenimentos preferidos do seu amigo Afonso Pala: resolver enigmas e charadas, muitas vezes relacionadas com cálculos matemáticos. Assim, aos poucos o capitão foi aguçando a curiosidade do sargento, que passou ele próprio a embrenhar-se pela resolução de adivinhas e problemas, ainda que nem sempre o conseguisse. Certo dia, enquanto trocavam descrenças políticas, Afonso lançou-lhe o seguinte desafio:

– Um dos grandes sábios da Antiguidade, de nome Tales de Mileto, ao passar pelo Egipto foi desafiado pelo faraó a calcular a altura da grande pirâmide de Quéops. Na verdade, o faraó apenas o queria impressionar com a grandiosidade do monumento, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Depois de algum estudo, Tales garantiu que estava em condições de o conseguir, bastando-lhe para tal uma vara e um dia de sol. Como é que ele terá conseguido?

Para além de pedir a repetição do enunciado, que o capitão fez de bom grado, Carlos teve consciência da dificuldade do desafio. Nos dias seguintes, o sargento matutou a esperança que alguma ideia lhe transmitisse a solução. Contudo, a passagem do tempo apenas adensou as dúvidas. Confessou que sem ajuda não conseguiria chegar a lado algum. Porém, o capitão esquivou-se a dar-lhe a resposta; mandou-o procurar numa biblioteca, aconselhando inclusive a da casa maçônica de Oeiras, onde o sargento realizara a sua iniciação. Carlos respondeu que não se sentiria confortável em aparecer por lá sem ser convidado, mas Afonso insistiu.

Sombras de Silêncio #64

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