Sombras de Silêncio #6

À medida que o sol se arrastava em saudade no céu, os cães impeliram o rebanho pelo pasto. Miguel alternava os monólogos distorcidos com as canções que tinham ficado da amizade com Manel, na sua fase de poeta da Natureza. O pastor despendia o seu tempo vagueando entre cantorias desenfreadas e solilóquios cruzados de personagens rebuscadas. Ainda que nunca tivesse visto uma peça teatral, a encenação e a representação convergiam intuitivamente no seu coração, guiadas por um toque indelével da arte circense, da qual tinha sido um ator atento e dedicado até ser vencido pelo amor.

O rebanho seguiu os pastos da margem do ribeiro até chegar ao rio Dão, no lugar da Fontinha, furando entre vontades insuspeitas. Miguel aproveitou então para comer um pão, sentado junto à porta do velho moinho. Por entre as migalhas de tempo que rolavam para o chão, reavivou o passado. Juntou alguns resquícios de memórias, aprisionadas por arbítrios impiedosos e isoladas pelo gume da fantasia. O pastor nem sempre conseguia descortinar a indizível linha que separava a realidade da ficção. Muitas das vezes bastava-lhe uma mescla indecifrável. E, pelo que conhecia do mundo, era feliz. Depois, o horizonte desvaneceu-se amiúde nos seus olhos, com o corpo a exigir uma paragem mais demorada. Pregado em descanso à soleira da porta, surgiu então um alarido inusitado que o despertou do marasmo:

– Acudam!

Enquanto caminhava em direção do pedido, Miguel nada conseguiu destrinçar entre a densa vegetação. Porém, os lamentos continuavam e faziam antever que algo terrível tinha acontecido. Considerou então que alguém poderia ter caído à água mas, encomendando-se a Nossa Senhora, recusou-se a acreditar no cenário. Ao chegar à origem de tal desassossego, o pastor encontrou Nuno, um adolescente de cabelos esgrouviados. Era filho do moleiro da região e tinha subido para um amieiro para fugir aos cães do rebanho, que o fitavam em silêncio do chão.

Sombras de Silêncio #6

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