Sombras de Silêncio #38

Nos dias seguintes à despromoção, Carlos foi colocado na reparação de algumas salas do quartel. As suas atividades militares habituais foram suspensas. Durante este tempo, o cabo foi assistindo à confraternização entre oficiais monárquicos e republicanos, alguns dos quais ligados aos grupos de revolucionários que orquestraram o regicídio. Tal situação incrementava a sua descrença no sistema, tal era a hipocrisia que transparecia aos seus sentidos. O exército estava a ser invadido pela política, cujos interesses procuravam incrementar as fileiras em ambos os lados da barricada. Não obstante, outros proveitos podiam adquirir relevância, tornando-se muito difícil discernir as fronteiras das vontades.

Ao capitão Teixeira estava de facto incumbida a tarefa de infernizar a vida de Carlos nas forças armadas, segundo as orientações dadas por José Francisco. Carlos tinha sido eleito um dos bodes expiatórios do incidente. Despromovido a cabo, passou depois a acompanhar a recruta, assistindo o sargento Jeremias. Apesar de inicialmente o seu superior ter demonstrado uma atitude amigável, colocou-o depois em situações de escárnio face aos recrutas. Inclusive, os próprios subordinados começaram a tê-lo como alvo preferencial de graçolas, cada vez mais acutilantes à sua honra e moral. Ainda que desde o início tivesse uma atitude repreensiva, a constante desculpabilização das posturas dos recrutas pelo sargento conduziu-os a uma esfera de impunidade que fazia transbordar a paciência do cabo.

Em meados de abril, Carlos, notando que a situação tenderia a tornar-se insustentável, resolveu abordar o capitão Afonso Pala, filho de várias gerações de militares e de quem se tornara amigo ainda antes do regicídio. Apesar de o reconhecer como próximo da ideologia republicana, a sua hombridade dava-lhe esperança de que os seus problemas pudessem ser atenuados, sem que para isso tivesse de abdicar do salário. O capitão, que conhecia alguns pormenores do processo, prometeu-lhe que iria interceder por ele perante as pessoas que tinham algum poder sobre a situação.

Nesse mesmo dia, quando ia para casa e ainda com a luz do dia a vigiar os seus passos, foi intercetado por um homem de aspeto andrajoso. Após ter sido assaltado e esmurrado em plena baixa, Carlos decidiu enfrentar os problemas e seguiu enraivecido até à casa de José Francisco. Mal a porta se abriu, Carlos empurrou a criada e irrompeu pela casa com uma vontade inexorável, como se tivesse sido mandatado por Deus para exigir justiça.

Sombras de Silêncio #38

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