Para Girolme, a vida foi-se dispondo ao longo de dias atarefados, entre o rebanho, as sementeiras, as colheitas e as noites solitárias. Refugiava-se num sorriso imutável e nas memórias, de quem tinha sido, de quem era e de quem ainda sonhara ser. Aprendeu a conhecer cada recanto do mosteiro e habituou-se ao espaço vazio das palavras da cantiga. Chegaria depois à conclusão que o tesouro poderia ser algo bastante distinto do que ele julgara. Talvez até já o tivesse encontrado, não menos o mosteiro e mais as pessoas.
Luís deixou de o acompanhar e Girolme ganhou a primazia da condução do rebanho pelos prados do vale. Seguia frequentemente pelas margens do ribeiro até ao rio Dão. Aí descobriu um moinho também ele muito antigo.
Chegou depois a festa anual de Santo António, celebrada numa aldeia próxima, Tabosa, e Luís voltou à sua função. De todos os lados da região concorriam rebanhos, com as ovelhas enfeitadas de farfalhos, lantejoulas e chocalhos. Cada pastor na sua vez conduzia o rebanho em volta de uma ermida deixada de vigília no meio de uma serra, enquanto um júri escolhia qual o rebanho melhor enfeitado e amestrado. Todas as agremiações populares deixavam Girolme muito curioso e interessado, enquanto se tentava imiscuir naquela cultura diferente. Em Lisboa, as pessoas preocupavam-se com jogos de poder e revoluções; ali, o tempo tinha afinado as coisas importantes da vida e dispunha-as gratuitamente para seu enlevo.
Por altura das vindimas, a quinta recebeu um batalhão de trabalhadores a soldo, entoando cânticos enquanto despediam as tristezas que a vida juntara durante o ano. Pelas manhãs, Girolme também participava na vindima, sempre ao lado do seu amigo Manel, que por aqueles dias também era colega de trabalho. Da parte da tarde ocupava-se com o rebanho. Ao longo dos anos, aquele mês de convívio laboral passou a ser o seu preferido, revisitando as pessoas que tinha deixado em anos anteriores. Achava curiosa aquela cultura do vinho, que juntava e apartava as pessoas ao sabor de um trago.
Um pouco antes do quarto aniversário da chegada de Girolme à quinta, e já depois da sua entrada impercetível no mundo dos septuagenários, Luís e Mariana tiveram o primeiro filho, Tiago. Entretanto, Joaquim falecera. Algum tempo depois apareceria Hugo. Barcina e Butrão chegaram dos montes hermínios, ainda novos, mas já com latidos de essência pastoril. Girolme mantinha-se como pastor e deixou que a rotina se acomodasse ao seu dia-a-dia. Apesar de o trabalho não ser fácil, gostava bastante do que fazia. Estava então certo que nascera para ser pastor e apenas lamentava não o ter sido durante toda a vida.