Sombras de Silêncio #3

Para além do mosteiro, das vinhas, dos campos cultiváveis e das matas, a quinta possuía ainda uma capela no alto de um monte próximo, que abençoava sobranceiramente o vale e prestava honras a Nossa Senhora da Cabeça. Afastadas do mosteiro, seguindo as carreiras da vinha, resistiam as muralhas de uma velha prisão com origem nos tempos subsequentes ao terramoto de Lisboa. Junto ao mosteiro, do outro lado do ribeiro dos Frades, subsistia uma antiga casa senhorial, pontualmente adaptada às necessidades da vida moderna e onde residiam os caseiros. Ao lado existia uma outra casa, destinada a albergar os senhores da quinta.

– Parece que vamos acabar juntos – balbuciou Miguel para o seu relógio.

Sentado e inclinado sobre a mesa, acompanhava em divagação a cadência dos ponteiros. A meio da refeição despejou vinho para a tigela da sopa. Levantou-se depois, tapou a garrafa e voltou a colocá-la na prateleira. Retornou à cadeira e, ao sentar-se, inspirou duas lufadas de solidão. Voltou a olhar para o relógio e notou que os ponteiros estavam parados. Miguel pegou-lhe então com reverência e deu-lhe corda. Porém, a maquinaria insistiu no marasmo. Em incontáveis anos, desde que o relógio lhe fora entregue pelo seu pai, era a primeira vez que tal acontecia. Miguel não sabia ver as horas e pouco se importava com o tempo, mas receou que a avaria no relógio fosse a vida a escapar-lhe.

– Oh diabo! – exclamou, rogando de seguida a Nossa Senhora de Fátima, a quem recorria nos momentos de maior aflição, para o ajudar.

Miguel abriu a tampa traseira e abanou-o sem sucesso. O misticismo envolveu-o e considerou seriamente a hipótese de se tratar de um sinal de que algo estaria para lhe acontecer. A razão toldou-lhe depois o espírito e considerou que o melhor seria pedir ajuda ao caseiro, para bem da sua quietude e pela memória do seu pai. O relógio tinha-o acompanhado ao longo de quase toda a sua existência e era o seu agregador de memórias. Naquele momento temeu que o tempo estivesse para desistir de si. O medo da morte tomou-o refém e lembrou-se então do seu amigo Manel, que o deixara entregue a uma solidão de diferenças entre conhecidos.

Após um novo abanão, o relógio insistiu em não funcionar. Estimulado por uma vontade derradeira, aproximou o relógio da vela e espreitou com atenção para a parte posterior da tampa, descortinando uma pequena fenda. Intrigado, usou a unha do polegar e conseguiu abrir a segunda tampa. Lá dentro encontrou um pedaço de papel descolorado, que retirou de seguida. Ficou de imediato maravilhado com o interior do relógio. Muitas vezes se tinha interrogado sobre a contagem do tempo e naquele momento desconfiou que a magia estaria naquelas rodas dentadas. No seu interior descobriu também algumas palavras minúsculas, numa caligrafia elegante. Porém, para além de já não confiar no olhar, não sabia ler. Ao longo da sua vida aprendeu a distinguir muitas letras. Chegou mesmo a decorar o alfabeto, mas sempre sentiu muitas dificuldades em juntar as letras num entendimento sustentado.

Sombras de Silêncio #3

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