Sem vislumbrar alguém, Miguel tentou abstrair-se do medo. Ao andar mais um pouco, descortinou então um homem deitado atrás de um socalco. Parecia ser mais novo do que Miguel; o cabelo era ruivo encaracolado e o bigode era farto. Vestia umas roupas sujas e rasgadas. Receoso, Miguel foi recuando com mil cuidados para não o acordar.
– Ó Afonso?! Bote aí dos, três, cato copos aqui p’ró Bilinho! – disse o homem, perdido num sonho.
Miguel parou e inquietou-se. Não sabia o que fazer e tampouco percebeu o que ele tinha dito. Ainda assim, acabou por perguntar de forma medrosa e envergonhada:
– O quê?
O homem não respondeu e inclusive ressonou de forma estridente, pelo que Miguel considerou que escapara e prosseguiu a viagem. Ao fim de meia dúzia de passos aligeirados, levantou-se um burburinho atrás dele. O homem cambaleava ao seu encontro. Porém, acabou por tropeçar e caiu desamparado no chão enlameado. Ficou assim por um instante, mas foi levantado por uma força misteriosa logo de seguida, erguendo a voz contra Miguel:
– Ouve lá… ó Pintassilgo dum raio, eu já nã te disse p’ra me deixares em paz!
Miguel encarou-o em silêncio. O ar esgrouviado do estranho assustou-o e quase o fez olvidar da maravilhosa sensação de voltar a ouvir a língua que os pais lhe tinham ensinado.
– Ai agora ‘tás… caladinho – continuou o homem, de olhos cerrados, tentando equilibrar-se conforme os sentidos lhe permitiam.
– Mira, eu nã sei qui é o sinhor – garantiu Miguel.
O homem levantou o olhar e esteve algum tempo a lutar contra a claridade que lhe confundia a clarividência. Acabou por confirmar que, de facto, se enganara. Cambaleou depois na sua direção, parou a um bafo de distância e pediu-lhe desculpa pelo lapso. Miguel, muito mais aliviado, disse logo que estava tudo perdoado. O homem debruçou-se então sobre ele para o abraçar e os dois acabaram por cair no chão. O estranho começou então a rir. Miguel também largou algumas gargalhadas, ainda que não percebesse a razão para tal. Estiveram os dois por largos minutos deitados no meio da estrada a rir, até que o homem se levantou e apresentou-se:
– Sou o Abílio, mas os mês amigos tratam-me por Bilinho – disse, estendendo a mão para Miguel, que a agarrou de imediato e também se apresentou, tentando levantar-se.