Sombras de Silêncio #24

Depois de escutar com atenção o que o seu amigo dissera, Carlos refugiou-se num silêncio de intenções. Tal deixou o anfitrião preocupado. José não considerava que a opinião de Carlos fosse relevante, mas achava que o sargento, tendo em conta a função que desempenhava no quartel, poderia ajudá-lo. Acreditava, contudo, que ele não o iria delatar.

– E o Aquilino Ribeiro, há muito que o senhor, o Alfredo e o Buíça o conhecem? – perguntou Carlos, revisitando uma tarde passada no Café Gelo.

– Há já algum tempo – referiu José, interessado em não mencionar datas.

– Também nas forças armadas se sente o descontentamento pelo desempenho de João Franco. Se tiver que cair, sendo por vontade de Deus ou pela força das armas, que assim seja – consentiu o sargento.

Carlos sabia da instabilidade social e naquele momento alvitrou a vitória das forças democráticas, ameaçadas pelo franquismo. José ofereceu então um charuto a Carlos, que o acendeu num tardar de introspeções contrafeitas, indo depois até à janela.

– Deverei tomar alguma precaução? – perguntou Carlos.

– Claro que não, senhor Carlos. Não se preocupe; se eu soubesse que poderia ser prejudicado por ser meu amigo, já o tinha avisado. Não receie, barcos moliceiros não pescam peixe graúdo – respondeu José.

Pela cidade, a Guarda Municipal esforçava-se na procura de outras ameaças, chegando a entrar abruptamente em casas de alguns conhecidos dissidentes do sistema. Ao saber da notícia no seu escritório, acudiram ao Primeiro-Ministro duas ideias: por um lado, assustava-o a certeza de os separatistas começarem a reunir material explosivo; por outro lado, o incidente era a prova de que o acaso lhe bafejara o destino, avisando-o do perigo eminente.

À saída da casa, Carlos confirmou que manteria segredo sobre aquilo que ouvira e José ofereceu-lhe um agradecimento pretensioso. Enquanto deambulava pela baixa pombalina, o sargento suspeitou que estaria a ser seguido. O frenesim crescente fê-lo vaguear pelo arrependimento. Alguns dos seus pouquíssimos amigos na capital estavam envolvidos em atos menos lícitos que visavam a destituição do poder reinante. Ainda que contestadas, a vontade d’el-rei que suportava as políticas de Franco. Carlos crescera em locais onde as ordens, por mais bizarras que fossem, não se discutiam ou contrariavam. Parou depois, alheado, ao ver uns miúdos de calças esfarrapadas a brincar com um pião no meio da calçada.

Sombras de Silêncio #24

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