Sombras de Silêncio #22

Carlos permaneceu em silêncio durante alguns instantes, enquanto pensava no que iria dizer. Fixou depois os olhos num quadro de uma mulher desnudada à espera de uma resposta loquaz que não o comprometesse.

– Parece-me que… de facto… talvez o nosso Primeiro esteja a governar de forma demasiado… severa – adiantou, Carlos, por fim.

– Que Deus me perdoe, mas diz-se inclusive que o homem tem o rei controlado – comentou Alfredo.

– Deus nos livre de tal infortúnio, mas é certo que alguém deveria afastar o senhor do poder, colocando-o onde as suas ações façam menos estragos – observou José.

– Que vá ele para o desterro! – concluiu Domingos.

– Mas isso só com o aval do rei e ele não parece inclinado para tal – disse Carlos.

– Outras vontades poderão emergir, senhor Carlos – replicou Manuel Buíça. Outras vontades poderão surgir…

– Se for para o bem do país… – deixou pairar o sargento.

– Proponho um brinde a tais palavras, na esperança que se concretizem de facto – disparou Alfredo, erguendo o seu copo.

– Viva a democracia! – acrescentou, entusiasticamente, José.

A tarde prolongou-se até os últimos raios de sol esconderem as colinas da capital entre o negrume, enquanto os homens apontavam os erros e as ameaças governativas. Carlos assistiu preferencialmente calado, constrangido por criticar o Primeiro-Ministro. Por outro lado, sempre tivera um desinteresse latente pela política.

As longas tardes de verão desapareceram e o frio invernal instalou-se no reino. José Francisco insistia em convocar Carlos para as tertúlias na sua casa, focando os aspetos menos dignos das ações do Primeiro-Ministro. Paulatinamente, o sargento foi soltando pitadas de escárnio e maldizer que orgulhavam todos à sua volta, levando-o inclusive a acreditar no que afirmava. Num desses momentos, José confidenciou-lhe que soubera, através de um amigo, que estavam a ser feitos esforços para travar de «forma definitiva» o poder franquista. Carlos engoliu em seco e percebeu a relevância do instante. À sua frente dispunham-se dois caminhos sinuosos e ele preferiria não ter de optar por algum deles. Mas já não havia tempo para voltar atrás. Fez-se surdo por conveniência e tentou parecer insuspeito.

Sombras de Silêncio #22

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