Miguel sorriu o nervosismo. Ainda que a companhia não lhe fosse útil, o homem optou pela decisão menos prejudicial. Já tinha tratado dos seus assuntos e Miguel não se adequava ao seu plano seletivo. Assim, decidiu ajudá-lo, convidando-o a entrar para o carro. Miguel considerou que tal reviravolta apenas poderia ser obra de Nossa Senhora. O fugitivo não se fez rogado e foi atrás dele. Contudo, não sabia entrar no carro e ficou especado à espera de ajuda. O homem abriu-lhe a porta, deixou descair o olhar com espanto e rodou a chave. O carro, branco por fora e com estofos de cabedal por dentro, estava impecavelmente bem tratado. O tabliê era negro e o volante era do tamanho das rodas, com um V inscrito num círculo vermelho. No lugar do ocupante, a gaveta de arrumações estava aberta, segurando uma bolsa azul de senhora. Miguel arrumou-a para o interior e fechou a gaveta com cuidado e desinteresse.
– Eu sou o Aníbal… Leite. Vamos embora a coberto da noite e do silêncio. De dia, teremos de ter mais cuidado. Nunca se sabe quem poderá estar à espreita, entre as sombras.
– E eu sou o… pastor Miguel Fernandes – respondeu, sem querer abdicar do título que levara para a prisão, como se estivesse a recuperar a vida que deixara e por acreditar que certas coisas eram inalteráveis.
Aníbal engatou a primeira velocidade e sorriu. Todavia, como não carregara no pedal da embraiagem, o carro guinchou, estremeceu e desligou-se, recusando dar andamento ao desazo.
– É pá, já não conheces o dono!
Aníbal ligou novamente o carro. Carregou no pedal da embraiagem e engatou a tração, mas largou o pé de forma descuidada e o carro voltou a estremecer e a desligar-se. Foi apenas à terceira tentativa que o carro saiu da garagem. Apesar das dificuldades, lá conseguiram chegar à estrada. Porém, o carro mantinha um andamento fraco e atrasado. Enquanto Aníbal ia maldizendo da tecnologia, adiantando que não percebia o problema do veículo, Miguel mantinha um silêncio nervoso.
Apesar dos olhares desconfiados, acabaram por sair da vila e seguiram em direção a Óbidos. Quando aparecia algum carro à retaguarda, os dois resvalavam para o pessimismo, divergindo na possível reação ao perigo. Porém, os veículos acabavam por realizar a ultrapassagem e eles foram continuando incólumes. Entretanto, Aníbal foi questionando Miguel sobre o seu passado e ele foi respondendo a preceito, entrelaçando a sua vida com algumas histórias e peripécias do circo. Ao contrário do que seria expectável, Aníbal não desconfiou. Ou pelo menos não o fez notar.