Sombras de Silêncio #205

Para além de se perder por vidas que não viveu, Miguel passava boa parte dos seus dias a espreitar o que acontecia no pátio, em particular durante a hora diária que os presidiários dispunham para lá andar. Deambulavam, taciturnos, de um lado para o outro, sempre vigiados por guardas. Miguel inventou jogos diversos durante as suas observações. De início gostava de os contar, mas como já não se lembrava de alguns números, chegava frequentemente a situações de impasse. Gostava também de, a partir da aparência, atribuir-lhes um nome. Numa fase mais avançada, chegou a criar diálogos imaginários entre eles. A sua vida transformou-se numa mistura aleatória de aventuras, entre o sonho e a realidade. Fizera-se um criador de histórias e a única diferença entre ele e os demais era que as paredes que o confinavam haviam sido impostas por outros.

Certo dia, ao fim de quase um quarto de século desde que ali tinha sido aprisionado e a um ano de terminar a pena, Miguel estava entretido com os últimos desenvolvimentos das aventuras de Estupidus e da princesa Destinus, no longínquo reino de Menfo. Quando estava confinado a uma vida partilhada com a princesa Sibela, e já depois de ter saído da torre, ele descobriu que a tristeza não era restrita aos pobres; mesmo os príncipes, ao fim de algum tempo, começam a padecer de um vazio que riqueza alguma do mundo pode colmatar. A vida, mesmo com a pessoa ideal, pode ser imperfeita. Depois de muitas desconfianças e discussões, Estupidus decidiu entrar com um pedido de divórcio na Câmara dos Amores e Conflitos do reino. Após passar por uma semana de provas, a separação foi consumada com uma grande cerimónia, semelhante a um casamento. A festa era idêntica; apenas se trocava o “sim” pelo “não” e tudo acabava com uma valente estalada ao proponente da separação. Estava Estupidus de rosto disponível e a princesa já com a mão estendida quando a portinhola se abriu e um sussurro entrou:

– Eu conheço o segredo do teu relógio! Com que então pertences à maçonaria? Temos de conversar melhor sobre o que se esconde «onde dão um mosteiro», caso contrário vais passar o resto da tua vida entre estas quatro paredes. Amanhã, pelo meio-dia. Boa noite e bons sonhos!

Sombras de Silêncio #205

Comentários