A notícia do ataque espalhou-se e chegou ao novo comandante, um sujeito de estirpe fria e justa, regressado de Angola, que logo considerou o episódio muito útil para marcar uma posição. Sem mais, condenou Miguel a passar dois anos em Segredo na cela onde já estava e convocou os guardas envolvidos para prestarem esclarecimentos. Logo que apurou todas as circunstâncias, o comandante decidiu também punir o guarda Costa, ordenando que fosse transferido, continuando ao serviço da Guarda.
Depois do incidente com o guarda, Miguel apenas saiu da cela para um novo julgamento, também por estar próximo o fim da pena que inicialmente lhe fora atribuída. Passou aqueles dois anos na certeza que o guarda Costa lhe ficara com o relógio do pai. Miguel entrou para a sessão judicial ciente que iria acabar o resto dos seus dias naquela prisão e longe da sua princesa. Às sucessivas perguntas, Miguel foi respondendo aleatória e desinteressadamente. Saiu da sala com mais quinze anos de pena e o comandante ordenou que continuasse no Segredo até que ele se esquecesse do incidente com o guarda Costa ou até que Miguel decidisse colaborar com a justiça.
Cerca de um ano depois, Miguel decidiu deixar para trás, por cansaço e inutilidade, as dúvidas e a forma como tinha vivido até então. Ao longo de dias pesarosos foi construindo outras vidas, alicerçadas em sucessivas divagações. Gostou tanto da primeira experiência, em que não era apanhado pelos guardas, voltava a Coimbra e casava com Ritinha, que decidiu continuar a puxar pela imaginação em busca de outras realidades. Com a passagem dos anos foi também criando pequenos jogos de diferenças temporais. A pele estava mais engelhada e as rugas já se faziam notar; a barba e o cabelo começavam a esbranquiçar; nas mãos, os ossos tornavam-se mais salientes; a magreza mantinha-se, mas a baixa estatura ameaçava aprofundar-se; a visão também começava a não destrinçar com a mesma perspicácia as formas mais afastadas que via da janela.