Sombras de Silêncio #2

A cozinha fazia parte do Real Mosteiro de Santa Maria de Maceira Dão, em terras de Vila Garcia, ali estabelecido desde os primórdios da nacionalidade portuguesa. Quando a ordem cisterciense foi extinta, o mosteiro e a quinta foram confiscados pelo reino. Alguns anos depois tornaram-se privados, mas ainda assim mantiveram a sua importância na região e na vida das suas gentes, num tempo em que eram o sol e a enxada que educavam o povo. Por abandono divino e humano, o desgaste estrutural começava a fazer-se notar no edifício secular.

Os donos da quinta viviam num tempo chamado longe e apenas pontualmente se inteiravam da sua administração. Em cada regresso procuravam reencontrar a cadência certa da vida, num lugar onde o burburinho tecnológico era abafado pelo chilrear dos pássaros e cada momento era mais do que instante. O tempo corria vagaroso, como se tivesse medo de perturbar aquele equilíbrio remoto. Entretanto, o governo da quinta estava a cargo de uma família que ali habitava. A vindima era o trabalho agrícola que movimentava mais meios e pessoas. Nos meses de setembro e outubro o mosteiro enchia-se de vida e de histórias. A maioria dos trabalhadores chegava das aldeias limítrofes e para alguns esta era a única fonte de rendimento ao longo do ano. Dezenas de pessoas comiam, dormiam e trabalhavam juntas, envolvidas num ritual antigo e por um ambiente de celebração que perpetuava a vontade de regressar.

O velho mosteiro, ainda que estivesse em deficiente estado de conservação, continuava a ser um lugar fascinante. Recordo-me de quando o encarei pela primeira vez no cimo do vale. Com a imponente torre medieval a dominar de forma inexorável o espaço envolvente, parecia a gávea de uma caravela a navegar sobre um sonho. A igreja abobada, que permitia o acesso à torre, tinha à entrada um brasão real, talhado no granito por cima da porta. Ao longo dos séculos edificaram-se diversos espaços monásticos contíguos à antiga igreja. No piso térreo, o claustro estava rodeado por azulejos desgastados e pilares engenhosos; ao centro, quatro laranjeiras guardavam uma fonte elegante. A sala do capítulo e a adega guardavam utensílios agrícolas, enquanto a antiga cozinha e o refeitório sucumbiram à heresia do tempo. No piso superior, a biblioteca e a maioria dos aposentos foram transformados em rocambolescos armazéns de palha.

Na tradição popular persistia o mito da existência uma passagem secreta, algures na quinta, que conduzia a um fabuloso tesouro. A lenda e os símbolos nas paredes do mosteiro foram entretendo a imaginação dos mais fantasistas, mas a realidade acabou por demonstrar que a noção de preciosidade depende sobretudo de quem perceciona.

Sombras de Silêncio #2

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