No final, enquanto Miguel se secava, o guarda Costa deixou-lhe a promessa que haveria de o libertar do comunismo à pancada. Atirou-lhe depois umas calças, um casaco cinzento, uma camisola interior branca e umas meias, ordenando-lhe que se vestisse. O guarda pegou então na roupa que Miguel trouxera e começou a analisá-la, acabando por notar o cordão de nylon roxo que segurava o relógio Cortébert Speciale a uma presilha das calças. Tal como era o procedimento habitual, pensou em tirá-lo para um saco de papel e posteriormente colocá-lo no cacifo onde ficariam os pertences do prisioneiro. Contudo, não resistiu à tentação de o infernizar mais um pouco:
– Que lindo relógio! Não sabia que os comunistas também precisavam de ver as horas. Este já cá canta!
Miguel abandonou os queixumes por um momento e encheu-se de uma raiva quase cega, alimentando uma vontade intrínseca de não abdicar do relógio, o único legado que o pai lhe tinha deixado. Um sopro de coragem toldou-lhe o espírito e sentiu uma necessidade premente de agir. Foi então a correr de encontro ao guarda Costa, que ficou sem reação. Porém, no último momento, Miguel amedrontou-se e quis travar a progressão. Acabou por escorregar e cair, acertando inadvertidamente um pontapé do guarda. Depois, e durante largos minutos, os dois guardas bateram em Miguel, deixando-o num estado lastimável. Outros guardas acorreram à sala, pois era impossível não escutar os gritos, os clamores e a choradeira desesperada de Miguel. O próprio inspetor Fernando Sousa também lá foi, desconfiado pelo atraso do processo. Apenas com a sua chegada a sova terminou, sendo que os espetadores dispersaram à sua entrada. Os guardas intervenientes explicaram de seguida o sucedido, com Miguel ainda estendido no chão e com os beiços tão empolados que não conseguia falar, mesmo que a consciência o deixasse. Ainda tentou erguer-se, mas desmaiou. Um dos olhos ficou encoberto pelos papos que se elevaram e o sangue corria-lhe pelo corpo desnudado.