Sombras de Silêncio #19

Buíça puxou por um charuto e acendeu-o, atento ao desenrolar da conversa, mas não esboçou qualquer comentário. José Francisco inquiriu depois o militar sobre a experiência em África. Carlos, mais defensivo, descreveu então as suas aventuras e a vida militar com cuidado e dignidade, exponenciando as dificuldades vividas na defesa dos interesses do reino.

– Eu também já fui militar, senhor Carlos – disse Buíça, no final da explanação.

– Mesmo? E por onde andou? – perguntou Carlos.

– Fui segundo sargento no regimento de cavalaria de Bragança, onde era mestre de armas e instrutor de carreira de tiro – respondeu Buíça, passando as mãos pelas barbas.

– E já não está no exército? – perguntou Carlos.

– Não, agora leciono no Colégio Nacional.

– O senhor Buíça tem uma pontaria exímia! No Terreiro do Paço é perfeitamente capaz de acertar em qualquer pardal que venha do Barreiro – comentou Alfredo.

Entre os pormenores da vida militar e o desconforto social que varria o país, a conversa prosseguiu. Carlos manteve-se resoluto em revelar tento na língua, pois queria evitar qualquer tipo de problemas que o infortúnio precipitasse. Saíram por fim do Café Gelo e Carlos seguiu direto para casa, não evitando, contudo, algum desconforto. A perspetiva de aqueles homens estarem ao serviço de algum ministério do reino desagradava-lhe bastante.

A desconfiança de Carlos desvaneceu-se depois entre a tranquilidade dos dias. Duas semanas depois, Alfredo bateu-lhe de novo à porta, convidando-os para uma visita à sua casa, também no Rossio. Joana, que crescera onde ninguém a convidava para ir tomar chá, ficou muito contente. Nas longas tardes, a solidão sugava-lhe lentamente a liberdade, sendo entregue de forma prematura à ociosidade e ao marasmo. As saídas para tomar chá e café, inicialmente em casa de Alfredo e depois em casa de José Francisco, possibilitaram-lhe um escape precioso.

Os homens e as ideias baloiçavam de forma frenética entre a irritabilidade e a sensação de impotência face a um regime que pendia para o despotismo. Aliada à vergonha nacional do Ultimato Inglês, havia uma crescente valorização do Partido Republicano, que garantiu muito apoio popular na comemoração do Tricentenário da Morte de Luís de Camões e posterior trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional; juntaram-se ainda a revolta falhada do Porto no ano seguinte ao ultimato, crises académicas coimbrãs que abalavam governos em Lisboa e o expansionismo de sociedades secretas enraizadas em todas as classes sociais, defensoras dos ideais democráticos.

Sombras de Silêncio #19

Comentários