Sombras de Silêncio #188

Miguel, estendido no chão e dorido de tanta pancada que tinha levado naquela noite, ainda pensou em explicar-lhe que aquilo tinha sido um enorme mal-entendido, mas concluiu que o melhor seria esperar pelo comandante. Permaneceu no chão até o guarda o ajudar a levantar-se. Já sentado, fixou de novo os olhos no quadro, reencontrando na memória algumas certezas inabaláveis. Foi então que entrou o comandante, seguido pelo guarda magricelas. Era um sujeito muito aprumadinho, de bigode e cabelos negros. O comandante foi sentar-se na outra cadeira, defronte para Miguel. Ajeitou as calças e, sorrindo, disse:

– Com que então, Miguel Fernandes, ou deverei chamar-te Lenine da Silva.

– Pode ser doutor Miguel, se fachavor – respondeu ele, de orgulho altivo, ocultando o cargo pastorício numa tentativa de fazer a ligação com o amigo.

– Muito bem, doutor Miguel, eu vou fazer-te uma pergunta e apenas estou disposto a fazê-la uma vez. Estamos entendidos?

– ‘Tá bem. Esta é a casa do doutor António? – retrocou Miguel, apontando para o quadro.

O comandante estranhou a pergunta, olhou para o rosto severo do presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, e replicou:

– Podes crer que sim! Sabes quem é?

– Claro que sim! – respondeu Miguel, abrindo um sorriso vitorioso, certo que as hostilidades iriam então terminar – É meu amigo! De Coimbra, andámos juntos na unisidade. Foi ele quem me arranjou lá um trabalho e saímos na mesma altura, cada um com os seus assuntos, mas eu nom sabia que ele tinha vindo p’raqui.

– Tu? Um reles comunista, amigo do grande doutor Salazar, o salvador da pátria? – perguntou o comandante, apelando aos subordinados que o acompanhassem nas gargalhadas. – Já viram? Quem diria? Primeiro, nos comícios, dizem, fazem e acontecem, maldizendo de tudo e de todos; sempre dispostos a deitar à lama os bons costumes e as leis da pátria. E depois, quando são apanhados, até dizem que são amigos do senhor presidente! Só podes mesmo estar a brincar comigo!

– Mas é verdade! Podem perguntar-lhe, se nom acreditam – replicou Miguel.

– Está bem, eu já lhe vou perguntar. Sargento, faça favor – ordenou o comandante para o guarda magricelas, que de seguida esmurrou Miguel numa orelha, deitando-o ao chão num zumbido doloroso.

Sombras de Silêncio #188

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