Quando tudo parecia perdido, e depois de anos de abnegação, Miguel conseguira finalmente que ela lhe dedicasse o seu coração. Considerou que apenas teria de esclarecer a situação com os guardas e poderia regressar para ela, julgando que até o pai haveria de valorizar aquele ato heroico. Foram depois os três guardas até à ponte, deixando a família Caricatus num imbróglio sobre o que haveriam de fazer. Prevaleceria a vontade de Saraiva em levantar o acampamento de imediato e fugir a coberto da escuridão.
Quando chegaram à ponte, um dos guardas foi encomendado para ir à pensão buscar os pertences do comunista. Voltou quinze minutos depois com uma mala aos quadradinhos, onde estavam a roupa, o chapéu, os sapatos, um pequeno estojo para a barba e o pano que o orador usara no comício. Um dos guardas revolveu a mala e encontrou vários papéis de propaganda comunista. Porém, não encontrou qualquer documento de identificação, o que justificou mais uma bastonada.
– Eu nom tenho, que é p’ra ninguém saber quem sou – justificou Miguel, entre lamúrias.
Os guardas acreditaram, não apenas por ser verosímil, mas por ser verdade. O corpo de Tiago, encontrado no final do dia seguinte junto a uma salina, também não apresentava qualquer documento que o identificasse. Ainda rapaz, Tiago Silva fugira de casa dos pais, abdicando de uma vida ligada ao pequeno comércio em Alcácer do Sal. Foi para a capital imbuído por um espírito revolucionário e disposto a viver nos limites, deambulando por uma vida boémia e idealista. Foi descoberto por Abrantes Fonseca, num tasco em Alfama, no meio de uma altercação sobre dívidas de jogo que terminou ao som de ameaças e de tiros. Aos poucos, o seu pensamento comunista foi sendo moldado. Alugou um quarto no Rossio e passou a acompanhar Abrantes Fonseca nos comícios que o partido ia fazendo, uns a descoberto e outros às escondidas. Conforme os perigos e as ameaças se acumularam, foi largado à sua capacidade inerente para empolgar as pessoas. Auguravam-lhe um futuro risonho. Contudo, acabou numa salina em Aveiro, sendo sepultado alguns dias depois numa vala para indigentes no cemitério da cidade. Por essa altura, Abrantes Fonseca já estava preso e tinha guia de marcha para o Tarrafal.
Os guardas levaram Miguel pela ponte e subiram a rua. Contornando o Teatro Aveirense sob os olhares discretos que se iam acumulando às janelas e chegaram à esquadra. Miguel foi de imediato levado para uma sala de interrogatórios, que continha apenas uma mesa, duas cadeiras e um quadro pendurado numa das paredes. Dois dos guardas saíram da sala e ficou apenas um a fazer companhia a Miguel, que foi mandado sentar numa das cadeiras. Inesperadamente, ao mirar o quadro, Miguel reavivou a coragem e a esperança, desatando a rir pela extraordinária coincidência. Agradeceu então, num tom baixo e impercetível, a Nossa Senhora. O guarda, ao vê-lo rir e a falar por entre os dentes, desconfiou que ele estaria para aprontar alguma matreirice. Abandonou então o canto da sala e acertou-lhe um murro que o fez tombar da cadeira, alertando-o para estar sossegado até à chegada do comandante.