Sombras de Silêncio #186

No meio das dores terríveis a que estava sujeito, Miguel alegrou-se por ter conseguido salvar Ritinha das garras daqueles homens. Em vão, tentou lembrar-se do nome de quem pretendia usurpar a identidade. Uma nova bastonada de dor acabou por precipitar o seu verdadeiro nome.

– Sim senhora, sôr Miguel, ora deixa-me olhar bem para ti. É pá, tu pareces um pouco diferente! O que é que te aconteceu? O medo minguou-te? De certeza que és tu? Oh lindinha, é este o teu namorado?

Ritinha ficou sem saber o que dizer, ainda com o destino atado. Qualquer das respostas poderia levantar muitos problemas. Sobressaiu então, na miscelânea de ideias díspares, a vontade de concretizar um desejo e proteger o irmão. Olhou demoradamente para Miguel, com as lágrimas a percorrerem-lhe o rosto, e confirmou. Miguel, que momentos antes mergulhara na escuridão do seu olhar, sentiu-se, apesar das dores, confortado pela utopia do amor. Estava feliz e sorriu. Não se importava pelo contexto no qual a confirmação do namoro tinha chegado; tampouco sabia o que lhe estaria para acontecer e em que circunstâncias o enlace mágico iria decorrer.

– Hum, a mim cheira-me a esturro! Metralha?! Traz a rapariga e levamos os dois p’rá esquadra.

Nom é preciso fazer isso! Eu sou o comunista e se nom acreditam podem ir à pensão onde ‘tou, ao pé da farmácia Lemos, no último andar; ‘tão lá as minhas coisas. A minha namorada nom tem nada a ver. Por favor, deixem-na ir! – revelou Miguel.

Entretanto, o guarda que estava na outra margem chegou esbaforido e desengonçado, indo também segurar Miguel.

– Assim, já estamos a falar a mesma língua! Ora vamos lá saber se não estás a mentir; se estiveres vou comer-te os miolos com migas – retrucou o guarda, mandando-lhe mais uma bastonada, que quase o fez tombar para o chão.

O outro guarda ergueu-o do chão com pontapés e ordenou-lhe que seguisse ao longo da ria. Miguel assim fez, olhando uma última vez de soslaio para a sua princesinha, sorrindo de seguida as dores. Ela retribuiu o sorriso e enviou-lhe um beijo sentido de ânimo. Miguel, por um instante ilusório, sentiu-se o homem mais afortunado do mundo.

Sombras de Silêncio #186

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