Sombras de Silêncio #182

Ritinha percebeu então a profundidade da sua melancolia. Durante os últimos anos, entre a vontade e o instinto, alimentando o ego frustrado, aprisionou-o por um amor inconsequente. Atormentou-se, por breves instantes, se poderia trocar a piedade pelo amor, mas percebeu que jamais seria feliz. Lamentou ter insistido em promessas que nunca pensou cumprir, apenas para afastar as intromissões intermitentes e aborrecidas de Miguel. Decidiu então rasgar-lhe em definitivo as esperanças:

– Talvez seja mesmo o melhor. Qualquer dia, iremos mudar de vida. O paizinho já disse que… isto é segredo, não contes a ninguém… quando chegarmos a Lisboa iremos ficar por lá e deixar o circo. Eu não sei o que depois irá ser de ti. Escuta… eu gosto de ti, mas é como amigo. Percebes?

Miguel não percebeu. Desconhecia inclusive que se podia ser amigo de uma mulher, porquanto sempre ouvira falar de amizade entre os homens e nunca entre mulheres e homens. Todavia, não quis revelar as suas dúvidas e acabou por olhá-la de soslaio, sorrindo a sua tristeza e confirmando o seu fado, ainda que muito lhe custasse:

– Sim, ‘tá bem.

– Tu és mesmo… assim. P’ra ti ‘tá sempre tudo bem. Nunca conheci ninguém como tu. Desculpa não ser quem tu querias, mas eu tenho outros sonhos e gostava de… eu gostava de encontrar alguém especial que me…

Foram então os dois surpreendidos pelo estalar de um galho que anunciava a presença de alguém na proximidade. Voltaram-se e fitaram Tiago Silva, o orador misterioso, que passou de seguida o dedo silenciador pelos lábios.

– Pensavas que nunca mais me verias? – perguntou ele, sentando-se ao lado dela.

– Eu… não sabia – comentou Ritinha, radiante pelo reencontro.

– Mas não te vais livrar assim de mim! Queres ir dar uma volta? Eu aluguei um quarto na pensão que fica ali ao lado da farmácia Lemos, no último andar. Tem uma vista espetacular sobre a cidade!

Miguel, que momentos antes julgara estar no fundo da sua vida, foi puxado para outras profundezas. Chegou mesmo a desejar ficar aprisionado numa torre longínqua, subjugado pela solidão do tempo.

– É melhor não, que o meu pai pode descobrir – respondeu ela.

Miguel gostou da resposta, mas repudiou a justificação.

– Está bem, podemos ficar aqui – consentiu Tiago.

Sombras de Silêncio #182

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