Sombras de Silêncio #160

Miguel resvalou com indiferença pelo trabalho no dia seguinte e ao anoitecer regressou ao parque de Santa Cruz, esperançoso por reencontrá-la. Mas não teve sorte. Voltou na manhã de domingo e foi repetindo passagens insipientes pelo acampamento. Encarou-a por fim, ajoelhada com um lenço na cabeça, a lavar alguma roupa num balde. Ele sentou-se num banco próximo, simulando um estudo botânico. Ela notou-lhe a presença e admirou-lhe a coragem por ali estar, sorrindo. Mas virou-se logo que ouviu o pai, Saraiva, já despido de Hércules, ordenando-lhe que fosse aquecer o caldo. Miguel estava muito curioso por saber como se compunham as relações naquela família e quais verdadeiros contornos da história encenada, pois desconfiava que algumas partes eram inventadas.

– Ó Ritinha, vê lá se te despachas no serviço! – repetiu o pai.

Depois da primeira noite, Miguel decidira não atribuir qualquer nome à sua princesa para evitar deceções ilusórias. Contudo, ao escutar o seu nome, todas as pontas soltas do universo se uniram e a vida fez sentido. Rui, Enormus, saiu depois doutra carruagem. Era um rapaz com cerca de vinte anos, de cabelo castanho-claro e ar de poucos amigos. Ao ver Miguel a mirar a irmã lembrou-se dele e do incidente no espetáculo. Apressou-se então na sua direção, desconfiado da sua presença e decidido a dar-lhe uma lição. Quando Miguel o notou pôs-se a olhar para as árvores. Mas de nada lhe valeu. De ar ameaçador, restringindo-lhe qualquer hipótese de fuga, Rui perguntou-lhe o que estava ali a fazer. Miguel lá foi balbuciando o nervosismo, mas logo se viu agarrado pelos colarinhos. Amedrontado, prometeu ir-se embora e nunca mais voltar. Rui acedeu, mas decidiu dar-lhe um empurrão e um pontapé. Amedrontada, Rita apenas lamentou a má-sorte do rapaz intrometido, mas o pai deu conta das ações do filho. Ainda em ceroulas, correu para saber o que se passava. Quando Rui lhe confirmou as suas suspeitas em relação ao rapaz, Saraiva mandou-o inclinar-se um pouco, parecendo que lhe ia agradecer, mas acabou por lhe dar uma chapada na cara, que doeu mais pela vergonha do que pelo impacto.

– A ideia é atrair os espetadores e não bater-lhes!

Miguel apercebeu-se da ação, mas manteve o passo assustado e saiu do parque. O atrevimento saíra-lhe mais caro do que o desejado, julgando que quem não é correspondido no amor não precisa que outros lhe criem mais problemas. Ainda assim, os sorrisos de Ritinha, que permaneciam agarrados à sua consciência pueril, faziam desvanecer qualquer infelicidade, mesmo enfeitada de violência.

Sombras de Silêncio #160

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