Sombras de Silêncio #156

Antero ajudou-o no que podia e ensinou-o sobre muitos aspetos da vida, em particular a conhecer o dinheiro, esforçando-se em ser um bom professor. Como Miguel tinha fugido com pouco mais do que a roupa que trouxera no corpo, Antero ajudou-o ainda a obter uma identificação na conservatória da cidade. Conseguiu inclusive, através de outras influências, que o rapaz não fosse obrigado a ir servir para o exército, por alegada «inadequabilidade».

Cerca de quinze dias depois, o doutor António regressou a Coimbra. Logo que soube, Miguel foi lesto a ir ao seu encontro, esperando-o à saída de uma sala que deveria limpar de seguida. Agradeceu-lhe então de joelhos pela vida que ele lhe oferecera, prometendo ainda que, logo que recebesse os cem escudos que Antero lhe prometera no final do mês, haveria de lhe dar pelo menos duas notas de vinte mil réis. O restante ficaria para abater o débito das refeições. O doutor António respondeu apenas que não esperava outra coisa.

Miguel acabou por cumprir o que prometera e em apenas três meses conseguiu liquidar todas as dívidas. Guardou ainda algum dinheiro, que lhe permitiu comprar mais roupa e alternar semanalmente de vestimenta. Por vezes, Miguel cruzava-se com o professor e adiantava-lhe novidades do seu trabalho e da sua vida na cidade, sempre com um sorriso nos lábios e um bem-haja no coração. Noutros dias, o professor deixava-se ficar na sala, enquanto Miguel varria o chão e limpava o quadro negro e empoeirado de giz. Falavam sobre os mais variados assuntos, sempre com o rapaz disposto a aprender o mundo e com o professor interessado em conhecer a opinião de alguém que se regia mais pelo coração do que pela pouca sapiência, em particular em questões relacionadas com a disciplina de Direito Comercial, que ele lecionava.

O tempo foi fluindo e Miguel tentou ambientar-se à cidade e ao trabalho, agradado pela vida que ganhara. Porém, todos os dias lembrava-se da que deixara e pesava-lhe o abandono maternal. Embora se sentisse realizado, faltava-lhe algo. Habituara-se à rotina, mas por vezes pressentia que a cidade era um enorme quarto vazio. Entre milhares, começou a sentir-se só, idealizando de soslaio uma vida mais rural, imediata e afetiva.

Sombras de Silêncio #156

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